terça-feira, 24 de julho de 2012

mais um afonso como pérola no deserto

um afonso só não surpreende por ser uma outra coisa. de resto surpreende tudo. se há coisa a que o afonso nos habituou foi a que sempre que escreve está a começar do zero. depois de ler todas as linhas que ele publicou é fácil sentir uma tremenda surpresa em cada escrito novo. é como se o afonso tivesse muitos lados e sem qualquer pressa começasse a mostrar-nos uma a uma. é um escritor de segredos.
este livro é por isso uma grande surpresa e é completamente novo e diferente de tudo o que escreveu. menos na humanidade. menos na melhor característica do afonso, desvendada por ele numa entrevista dada recentemente - quando queremos recordar a vida que vivemos não pensamos na "normalidade", vamos sempre lembrarmo-nos dos momentos extraordinários. porque todas as vidas estão recheadas de momentos extraordinários mascarados de quotidiano. e é isso que o afonso faz, pega em cenários de aparente normalidade e dá-lhes um cunho de magia e surrealidade. e no fim nós acreditamos que aquilo aconteceu mesmo (até porque o afonso tem a imaginação presa às pessoas reais) e que aquelas pessoas são the girl next door. a rosa desta história, Jesus Cristo Bebia Cerveja, é a nossa girl next door. o que nos dá uma fé nas pessoas e nas suas vidas que vá... é do caraças (vai daqui o primeiro obrigada ao afonso).
"Os nós dos seus dedos pareciam os cotovelos de Isabel e o cheiro que trazia era como o de Deus. Deus cheira a touro, a terra e ao ventre das coisas. Os dedos dos colegas de Isabel, dos seus amigos, dos seus ex-namorados, eram como os seus cabelos molhados, acabados de lavar. Tocavam-na, mas eram feitos de palavras perfumadas. Preferiu João Lucas Marcos Mateus e expulsou os literatos da sua vida. Alguns eram certamente geniais. Sabiam versos gregos e escavavam coisas. Mas as suas mãos eram como um mau penteado."
no afonso as pessoas são terra. são quase como a verdade. nós ouvimos falar delas e são verdade. o afonso tem poesia na tristeza e desânimo, na mãe de rosa que foge e volta envolta em algo sagrado porque a rosa precisa de a sacralizar para a entender e aceitar. há poesia em todas aquelas personagens e nenhuma cheira a água de colónia. é a poesia da verdade.
e a rosa nós nunca a entendemos. nunca vamos entender, por mais que tentemos ela troca-nos as voltas. o amor à avó é da pele e do sangue mas a pele e o sangue dela são mais do que amor à avó. pouco mais. e é incrível ler um livro inteiro à volta de uma menina, de quem não sabemos idade e de quem conhecemos apenas o amor pela avó. mais nada. podemos adivinhar e intuir, mas o segredo das suas acções está entre o afonso e a rosa. e leva a avó à terra santa, leva mesmo, porque se acreditam que é a terra santa é porque é. numa teia de vontades e ajudas e interesses alguns obscuros a avó vai a jerusalém onde cristo bebia cerveja (e o afonso prova que sim, que é verdade, explica porquê e hai de quem a partir de hoje diga que ele não a bebia). a religião neste livro é uma prova de amor pela avó e pela nossa senhora que nas estátuas parece estar a bater palmas, feliz. é uma mostra de que a religião e a instituição religiosa não têm de andar de mãos dadas porque a religião vai de coração em coração sem se enganar no caminho. e este segredo eu já o sabia, o afonso só me acenou com a cabeça.
metam os olhos neste miúdo. eu já os meti e nunca os vou tirar. não consigo ser imparcial qb quando tenho nas mãos um livro destes. há muito tempo que não era leitora de nada como fui deste livro.  obrigada afonso, outra vez.


quarta-feira, 18 de julho de 2012

«Pois há-de ser pela música que no inimaginável coração do tempo vem permanecer tudo o que se passou, tudo o que passa sem poder acabar de passar, o que não teve nenhum substância, mas sim um certo ser ou avidez de tê-la. Tudo o que se interpôs no fluir temporal, detendo-o. Tudo o que não seguiu o curso do tempo com os seus desertos, onde tantos abismos se abrem; o que não concordou com o seu invisível ser, que somente se nos dá a sentir e a ouvir, mas não a ver - o ver aquilo que o tempo causou é já um juízo. Pranto também esta música do decorrer, como se o incrível coração do tempo tivesse recolhido o pranto de tudo o que se passou e do que não chegou a dar-se. E o gemido da possibilidade salvadora, e o que que foi negado aos que estão sob o tempo. Parece-me que é o sentir do próprio tempo aquilo que se desarma musicalmente sobre o sentir de quem escuta ao padecê-lo. Uma musica que vem dar-se no modo da oração.»


Maria Zambrano, "Clareiras do Bosque", Relógio D`Água, 1995   

Roubado daqui

terça-feira, 10 de julho de 2012

ausência dos meus livros

estive uns tempos fora daqui. por ter o coração bloqueado e por ter a vida em caixotes sinto que a minha cabeça também esteve dentro dos caixotes. e os meus livros também.
entretanto o mundo continuou a acontecer. perdemos o nosso jorge figueira de sousa, livreiro que homenageámos em fevereiro no encontro livreiro. deixa-nos um legado tão gigante e único como a sua livraria na madeira. apareceu a documenta e com ela livros de mão cheia. o afonso cruz lançou dois novos livros que estou agora a ler e dos quais darei conta aqui do tão belos que estão a ser.

entretanto mudei de casa. rearrumei os livros por ordem alfabética, por temas, passei os olhos um por um. voltei a gostar deles. voltei a querer lê-los todos. voltei a eles devagarinho. estou a voltar a eles devagarinho e assim também estou a voltar a este blog. ao mesmo tempo que junto as minhas peças junto as peças dos meus livros. e encaixo novamente a minha cabeça dentro dos meus livros. e volto à escrita.

Manifesto da reacção

Manifesto

Ma-ni-fes-to

Contra o poder das palavras de-co-ra-das. O desvio do cérebro em detrimento dos olhos.
Contra o deleite puro. O engano da arte. A distracção da arte. Manifesto contra a arte como
distracção. Engodo.

Em favor da luxúria. Das tremuras. Das tonturas. Da revolta. Da ternura. Do amor.
Contra o corpo agrilhoado, a favor da paixão. Contra as palavras de-co-ra-das. A favor do
arrependimento, do irreflectido, da névoa nos olhos e no discernimento.

Por palavras que te encalham em vergonha alheia, em embaraços, em tintas na parede e nas
mentes, que te fazem agir e reagir.

Re-a-gir.

Pelas palavras que te fazem reagir, que te fazem reagir, que te fazem reagir, que te fazem
reagir, em loop ascendente.

Manifesto pelas palavras de amor que nos fazem amar quem desconhecemos. Que nos fazem
embarcar em viagens alheias. Pela surpresa, o desconhecido e outra vez a surpresa.

Pelas palavras que pertencem a quem não sabe ler palavras. Que não são palavras. Pela
reacção. Pela surpresa. Pelo poder do manifesto da reacção.