sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Maria Lamas e o papel activista da mulher na sociedade portuguesa do séc. XX


O séc XXI ainda nos pede para falarmos da condição da mulher nas artes. Ainda que seja possível verificar muitos avanços, há algumas áreas onde a dificuldade persiste. O facto de estarmos numa época de avanços culturais e sociológicos no que respeita as categorias de género, apenas dificulta o diagnóstico, muitas vezes é dentro de quatro paredes e na intimidade que as dificuldades se criam. Apesar disso, um olhar mais atento consegue descobrir alguns indicativos com facilidade. Por exemplo, nas áreas artísticas, na esmagadora maioria das vezes, as mulheres não têm trabalhos tradicionais, com horários e facilidades na gestão da doença ou dos cuidados familiares, e é inegável que são essas as funções ainda destinadas à mulher – seja por contexto e pressão social, seja por, e cada vez com mais força, uma dificuldade relacionada com a interpretação de géneros em que qualquer um deles, homens ou mulheres, não se consegue, naturalmente, desprender do papel que lhe foi atribuído ao longo de séculos. 
Assim é importante olharmos para a evolução do papel da mulher nas artes, nomeadamente na literatura, ao longo do século XX para melhor percebermos o sítio onde estamos. A literatura portuguesa escrita por mulheres, no séc. XX, passou por muitas mudanças e alterações, as mesmas que a própria história das mulheres em Portugal, inegavelmente ligada à história do feminismo em Portugal. O movimento feminista português foi sempre um movimento moderado, nunca declaradamente subversivo nem violento, mais atento à satisfação das suas reivindicações pela força da persuasão, do direito e da educação do que pela força da violência e das manifestações. Houve muitas e diferentes reivindicações mas a grande luta feminista do início do séc XX era uma luta sobretudo pela liberdade de escolha da mulher. Eliana Guimarães, no II Congresso Feminista Português (1928), afirma: “O que queremos nós para as mulheres? Muito simplesmente isto: o pleno desenvolvimento da sua personalidade. Que, criança, ela seja instruída para que, adulta, ela possa exercer a sua actividade de harmonia com as suas aptidões sem que o ensino lhe seja negado ou o seu campo de acção cerceado apenas porque é mulher. E queremos também que o seu esforço seja reconhecido e recompensado como merece.”
A forma como o séc XX vê e condiciona a mulher vem de muito para trás. Segundo a cultura ocidental a mulher identifica-se com o lado biólogico do ser humano, enquanto o homem surge como um animal cultural. Esta ideia foi bem ilustrada por Baudelaire que afirmava que la femme est naturelle, c’est à dire abominable. A imagem da mulher esteve desde sempre ligada à ideia de introspecção, emoção descontrolada, irracionalidade e desordem por oposição ao racional, génio criador, inteligência, atributos ligados à ideia de masculinidade. A juntar a esta ideia o séc. XIX trouxe à mulher as suas tarefas de esposa e mãe, em exclusividade, mesmo nas classes mais baixas que tinham de juntar essas funções ao trabalho que não podiam dispensar. 
Quando falamos de mulheres escritoras do séc. XX temos ainda de ter presente que durante todo o século as mulheres eram muito pouco instruídas, eram poucas as que sabiam sequer ler e escrever. Assim, temos de ter presente que estamos a falar de um grupo restrito e pequeno, de uma classe instruída, muitas vezes mulheres que por via do casamento ou familiar já viviam num meio literário, com hábitos culturais ligados à escrita e à leitura. Cedo muitas dessas mulheres perceberam a importância de ter uma voz activa, perceberam qual o papel da literatura, bem como a responsabilidade que acarretava o facto de a publicação dos seus textos ter uma necessária repercussão em todos os que as liam. Essas escritoras, que para publicar tinham não poucas vezes de ser inteligentes e publicar livros que aparentemente não questionavam a ordem vigente, tornaram-se exímias a questionar essa mesma ordem entre linhas, passando muitas vezes mensagens subliminares e, outras vezes, através de uma descrição realista do que era o papel da mulher e a sua incapacidade em, dado o contexto, conseguirem usar da sua livre escolha, sendo autónomas. Através da escrita elas incentivavam as leitoras a procurarem essa autonomia, empoderando-se e confiando nas suas capacidades enquanto figura responsável pelos seus actos. Na verdade a função daquelas mulheres quando escreviam era cumprir um papel que a cultura muito mais tarde vai assumir de forma mais aberta, nomeadamente durante o neo-realismo dos anos 40 ou 50, ou, de forma mais alargada, em grande parte da literatura do pós II Guerra Mundial – um papel de denúncia e aberta comunicação com o leitor, assumindo a responsabilidade que essa comunicação acarreta.
Era importante então criar estratégias para chegar ao maior número de mulheres, e não apenas através da literatura. E efectivamente não foi só com a literatura que este propósito se cumpriu. Exemplo disso foi a escritora Maria Lamas (1893 – 1983). Maria Lamas foi uma activista feminista, pelos direitos das mulheres, nomeadamente pela sua autonomia face a qualquer tipo de domínio externo – seja de sustento, familiar ou cultural. Maria Lamas foi jornalista da revista Modas e Bordados do Jornal O Século de 1928 a 1947, sendo sua directora a partir de 1930. A sua acção concentrava-se numa rúbrica chamada O Correio de Joaninha, uma espécie de consultório sentimental, absolutamente anónimo, onde as mulheres colocavam todo o género de perguntas. Era sempre Maria Lamas quem respondia, com o pseudónimo de Tia Filomena. Era aqui que Maria Lamas chegava com mais facilidade às mulheres disfarçando os seus conselhos de conselhos vagos e generalistas que iam dos bordados à vida íntima. Foi naquele ambiente aparentemente inócuo e feminino que durante quase 20 anos Maria Lamas influenciou centenas de mulheres a tornarem-se mais livres, autónomas, responsáveis pelo seu caminho. A revista teve um sucesso estrondoso, autonomizou-se do jornal, inspirou um programa de rádio e, inclusivé, deu origem em 1946 ao  Movimento de Acção Juvenil Joaninha. No ano seguinte Maria Lamas resolve organizar na Sociedade Nacional de Belas-Artes em Lisboa uma exposição intitulada Livros de Escritoras de Todo o Mundo, o que ditou o fim da sua colaboração com a revista, ordenado pelo Estado, dando-se início a uma perseguição política de que Maria Lamas escapara, de forma surpeendente, durante duas décadas à frente da revista. 
O trabalho do activismo feminista na cultura está ainda a meio do caminho, ainda que agora a censura esteja sobretudo ao nível privado, o que torna muito mais difícil perceber qual o caminho a tomar. Para isso são certamente importantes as mesmas mulheres que assumem a defesa da autonomia e igualdade de oportunidades para todos os géneros, tanto num nível público como privado, numa descoberta do que ainda falta fazer nos mais diversos níveis da acção da mulher e da sua vida enquadrada social e culturalmente. Porque a história não se repete porque não é igual, mas é possível assistirmos a retrocessos civilizacionais se não soubermos estar atentos e percebermos que por mais que possa a muitos parecer desarticulado e descontextualizado o feminismo tem ainda muito caminho para fazer. 



Rosa Azevedo
Artigo publicado na revista Venduta 13, em Dezembro de 2019







terça-feira, 16 de julho de 2019


Hoje é um dia muito especial para nós, cá está o livro em que andamos a trabalhar há tanto tempo. Foi o primeiro livro que a Snob e o Duarte (essas duas bonitas entidades inseparáveis) quiseram publicar, e por isso não temos palavras para esta alegria de editores! Tenho a certeza que vão gostar por isso lancem-se na pré-venda e ajudem-nos a editar este livro.
Um obrigada aos compinchas snobes Pedro Simões e Sara I. Veiga por terem embarcado nesta maluqueira de história!
Em Açúcar de Melancia
de Richard Brautigan
Ilustrações de Pedro Simões
Tradução de Sara Veiga
O livro está em pré-venda até dia 28 de Julho. O nome de todos os que o comprarem antecipadamente figurará na última página do livro. São nossos e vossos. O livro estará disponível no fim de Agosto!
O livro está em pré-venda pelo valor de 12€ (30% de desconto) e oferta de colecção de postais com as ilustrações de Pedro Simões e portes de envio incluídos para Portugal Continental. Mas também enviamos para qualquer parte do mundo. Para isso deverão transferir o valor de 12€ para o IBAN: PT50 0035 0995 00674695530 36 (José Duarte da Silva Pereira), enviando comprovativo e nome para figurar nos agradecimentos para os livreiros por mensagem facebook ou para editorasnob@gmail.com. Podem também manifestar a vossa vontade na caixa de comentários.
Podem também pagar através de MBWay com o número 968 752 147.
Richard Brautigan (30 de Janeiro de 1935 - 16 de Setembro de 1984) foi um romancista americano, poeta e contista. As suas obras são incomparáveis pelos mundos que inventa, as personagens satíricas, os universos nunca alcançados por outro escritor.
O livro que a Snob agora publica, Em Açúcar de Melancia, fala-nos de euMORTE e de um narrador que narra as suas experiências neste local utópico (será?), num mundo pós-apocalíptico, onde o sol tem uma cor diferente conforme os dias, onde tudo é feito de açúcar de melancia, onde a vida se vive em paz e tranquilidade, com referência às comunas experimentais dos anos 60, sempre contraposta com a violência latente de inBOIL. Brautigan parece aqui sugerir um outro sítio onde experienciar a vida, testando a imaginação e piscando o olho à geração da contra-cultura. É na negação do real que aqui se encontram alternativas, no convívio com personagens que não deixam de ser, no limite, profundamente reais.

quinta-feira, 30 de maio de 2019

Rui Caeiro, pela mão de João Oliveira Duarte





(carregar na imagem para aumentar)


O nosso Rui Caeiro, na Colóquio Letras 201, por João Oliveira Duarte. Livro à venda em livrariasnob@gmail.com ou www.livrariasnob.com

terça-feira, 2 de abril de 2019

Curso MULHERES RARAS



CURSO MULHERES RARAS
Cultura Feminina e escritoras portuguesas no séc XX
com Rosa Azevedo

4 e 11 de Maio (sábados)
15h–18h30
50€

Mínimo: 8 alunos
Inscrições: rosa.b.azev@gmail.com

Nas publicações de referência da História da Literatura Portuguesa do séc. XX escasseiam mulheres. Por um lado podemos afirmar sem estar longe da verdade que as mulheres escreviam menos que os homens. Mas porquê? E será que se justifica que os nomes de mulheres ao longo da primeira metade do século se contem pelos dedos de uma mão? Neste curso vamos falar de uma cultura feminina, por oposição a uma escrita feminina, revelar o que se passou no século XX em Portugal, falar de escritoras, do meio onde elas tiveram de se afirmar, pensar em conjunto que fenómeno de apagamento foi este. E, acima de tudo, vamos devolver à literatura alguns destes livros e destas autoras.

AUTORAS

Maria Judite de Carvalho, Maria Ondina Braga, Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa, Celeste Andrade, Maria da Graça Azambuja, Maria Archer, Isabel Meyrelles, Graça Pina de Morais, Isabel da Nóbrega, Irene Lisboa, entre muitas outras.

ROSA AZEVEDO

É formada em Literatura Portuguesa e Francesa com curso minor em Literaturas do Mundo e tem mestrado em Edição de Texto. Tem realizado desde 2007 diversos cursos de literatura portuguesa e hispano-americana, para além de outros trabalhos de produção ligados à literatura, nomeadamente na área do surrealismo e da edição independente. Fundou e foi presidente da Associação Cultural Respigarte e do grupo teatral A Mancha. É produtora do Reverso – encontro de autores, artistas e editores independentes e do Muito Cá de Casa da Casa da Cultura de Setúbal, para as questões da literatura, onde é também moderadora. É livreira e programadora cultural da Livraria Snob. Mantém o blog estórias com livros.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

PRÉ-VENDA / INÚTIL, colecção de poesia da Snob




Apresentamos agora a nossa nova colecção de poesia, colecção INÚTIL, com o lançamento de dois livros de dois autores fundamentais do séc XX. O Maiakowski traz consigo a voz e participação do tradutor Adolfo Luxúria Canibal, e o Rilke chegou-nos pela mão do querido amigo Rui Caeiro, que infelizmente não viu esta nova edição, mas que carinhosamente saudou a sua chegada. Traduziu este livro com a amiga de longa data, Ana Diogo, é uma tradução a quatro mãos. Um livro traz-nos o grito, o outro o silêncio.

Os livros estão em pré-venda até dia 28 de Fevereiro. O nome de todos os que o(s) comprarem antecipadamente figurará na última página do(s) livro(s). São nossos e vossos. Os livros estão em pré-venda pelo valor de 15€ os dois (Maiakowski 8€ / Rilke 7€ se quiserem apenas um deles)*, com portes de envio incluídos para Portugal Continental. Mas também enviamos para qualquer parte do mundo. Para isso deverão transferir o valor pretendido para o IBAN: PT50 0035 0995 00674695530 36 (José Duarte da Silva Pereira), enviando comprovativo e nome e título do livro pretendido - para figurar nos agradecimentos - para os livreiros por aqui ou para editorasnob@gmail.com. Podem também manifestar a vossa vontade na caixa de comentários.

Podem levantar os vossos livros a partir de 15 de Março nos vários lançamentos ou nas nossas livrarias (Livraria da Cossoul ou Almanaque 23).

Obrigado por serem leitores tão snobes como nós.



Mais sobre nós no nosso site: http://www.livrariasnob.pt/

* Preço de venda ao público após pré-venda: 22€ os dois (Maiakowski 12€ / Rilke 10€)

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Córtazar e o erotismo

Hoje é o dia de se falar de Cortázar, desaparecido para ser eternamente cronópio há 35 anos.

Toco a tua boca.
Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da minha mão, como se a tua boca se entreabrisse pela primeira vez, e basta-me fechar os olhos para tudo desfazer e começar de novo, faço nascer outra vez a boca que desejo, a boca que a minha mão define e desenha na tua cara, uma boca escolhida entre todas as bocas, escolhida por mim com soberana liberdade para desenhá-la com a minha mão na tua cara e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide exactamente com a tua boca, que sorri por baixo da que a minha mão te desenha.
Olhas-me, de perto me olhas, cada vez mais de perto, e então brincamos aos ciclopes, olhando-nos cada vez mais de perto. Os olhos agigantam-se, aproximam-se entre si, sobrepõem-se, e os ciclopes olham-se, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam sem vontade, mordendo-se com os lábios, quase não apoiando a língua nos dentes, brincando nos seus espaços onde um ar pesado vai e vem com um perfume velho e um silêncio. Então as minhas mãos tentam fundir-se no teu cabelo, acariciar lentamente as profundezas do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de uma fragrância obscura. E se nos mordemos a dor é doce, e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo do fôlego, essa morte instantânea é bela. E há apenas uma saliva e apenas um sabor a fruta madura, e eu sinto-te tremer em mim como a lua na água.



O Jogo do Mundo (Rayuela), de Julio Cortázar, tradução de Alberto Simões, Cavalo de Ferro, 2008