sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

a fé e o amor na forma improvável

não gosto do ritual de me sentar a escrever sobre os livros do afonso. já tanto se disse, já tanta gente escreveu sobre este livro que não me apetece acrescentar mais um ponto a um longo texto já escrito por tantos outros.

o afonso foge a muitas das categorias óbvias em que poderia já ter caído. um jovem escritor, talentoso, com boa figura e boa presença poderia, facilmente, cair nas teias da crítica fácil ávida de uma palavra errada, um pé colocado ao lado por estes novos escritores, para criarem um monstro.

não conseguem porque o afonso não põe o pé ao lado e nem faz esforço por não o fazer. é autêntico, no que a palavra tem de melhor. está ali, escreve, vive, marca presença e fala. e fala bem, e tem as palavras não ensaiadas nas alturas mais improváveis e funcionam sempre.
digo estas coisas do afonso porque acho que isto que digo tem ligação com o novo romance dele, para onde vão os guarda-chuvas.

o que quero falar hoje aqui é a forma como o afonso viaja. o livro é uma viagem plena. uma viagem inteira. uma viagem ao paquistão sem nunca se referir o país. uma viagem à intolerância que se deixa esmagar  pelo amor sem que isso nunca se veja em lado nenhum. é um livro sobre o amor. sem cliché nenhum. sem cliché nenhum, repito, antes que desistam já aqui deste texto.
é um livro sobre o amor.

sobre o amor. e é difícil falar do amor num planeta onde os livros falam todos sobre o amor mesmo quando o amor não interessa nada. mas aqui interessa. fala do amor absolutamente improvável. em todo o lado. fala do que se parte e do que parte com a morte, em primeiro plano. e fala do amor que se conquista que nem sempre é o que se precisa. e do amor que é criminoso porque não entende as barreiras do que deve ser aceite e indestrutível.

e é uma viagem pela religião. quem me conhece sabe que tenho um grande fascínio pelo estudo das religiões, com uma considerável distância. aqui tenho de parar num episódio que li muitas vezes, que repeti incansavelmente até entender o peso que teve no que estava a ler e no que seria aquela história a partir dali. a certa altura conta-se a história de alguém a quem o pai obriga a ler a Bíblia e que, não querendo lê-la, lê e decora passagens de outros livros. Elahi apanha uma parte da Alice no País das Maravilhas pensando que é da Bíblia e interpreta-o à luz da fé católica com algum encanto e com o encontro de Deus. daquele Deus. o livro é isto. é sempre isto. uma interpretação de uma religião que é uma forma de agir que é uma forma de não sofrer que é uma forma de amar.

o afonso atingiu aqui um ponto profundo da escrita dele. como se descansasse de desenhar a escrita e a tornasse visceral. descreve personagens banais transformando-as nas pessoas da porta ao lado, mas da nossa porta ao lado, indispensáveis e parte da nossa pele.

e chegou a altura de falar de Isa. o expoente de uma liberdade que não se deseja. o retrato de uma tempestade que é ainda uma criança. um miúdo, americano, adoptado para permitir o perdão e a paz. o Isa substitui a religião tornando-se para esta família o verdadeiro acto de fé. e que como todas as fés não pode existir em paz, nem em consenso, nem em harmonia. e ao ser a fé de uns é a heresia de outros. é uma guerra que traz Isa, sobretudo dentro do espaço que ele terá de ocupar, vivendo no seu corpo as incoerências, desesperos e paixões de uma religião.

escarlatina escarlatina escarlatina
é a oração de Isa. capaz de muito mais do que eu alguma vez consegui com os meus tipos de fé.

no dia do lançamento o afonso disse uma coisa que tenho andado por aí a repetir e a pensar e a escrever. que no universo há muitos sítios para algo estar desarrumado e apenas um para se estar arrumado o que complica o encontrar onde estar no sítio certo.

e aqui entre nós afonso, eu tu e aqueles que já leram o livro, a forma como descreves o sítio onde o Isa encontrou o seu lugar para estar arrumado é dos momentos mais perfeitos que eu já vi em tantos livros que já li. no precipitar de uma tragédia há finalmente a paz. não a paz que podíamos esperar, de todo. a paz da escarlatina. e é de uma beleza absolutamente estonteante. e o livro parou no sítio certo. ali, no sítio certo de Isa, à beira de um abismo que impossibilitaste de existir. ficou o Isa encaixado e nós na pele com a sensação da quase queda quando tudo o que ainda se vê é só o céu. mesmo antes da queda, a que nunca existe, porque o livro chegou ao fim.





1 comentário:

Anónimo disse...

Estou convencida!!! Só tinha lido " Os livros que devoraram o meu pai" e achei que prometia... Vou comprar e ler este que parece prometer ainda mais...