sexta-feira, 4 de abril de 2014

vamos perdendo os nossos malditos



Contaram-me que as letras descansam de lado, nas páginas macias dos livros antigos.
Outros afirmam-me que os textos mudam ao sabor das edições, e que nenhuma se compara
à que se leu primeiro.

Há ainda quem me confidencie que recebe os livros de braços abertos, às vezes até com as pernas,
e dou por mim a olhar para as lombadas que me rodeiam, a senti-las latejar como um animal magnífico,
alheio a interpretações domésticas.

Sei que se estender a mão o irei acordar; prefiro entreter-me a escrever este texto,
onde as letras são ainda verticais e se estampam no papel, como uma mancha de tinta,
uma ave suicida, um eco sem som.

                                                                 *

Também conheço um poeta exilado num condomínio de metáforas. Rodeou-se de palavras
que cultica em cadernos e guardanapos de papel, com a dedicação e a paciência de um
jardineiro cego.

Ninguém se atreve a dizer-lhe que nem as piteiras sobrevivem na aridez desse jardim meticulosamente
escrito, onde passa horas infindáveis a podar o vazio e a regar o silêncio que brota
das suas páginas inéditas.

E, no dia em que morrer, uma duna será tudo o que restará da sua obra, que o vento
e o tempo se encarregarão de aliviar do jugo das metáforas.

                                                             *

E conheço uma música frágil como a chuva ou as lágrimas evitadas. É uma música 
que ouço muitas vezes enquanto escrevo ou leio, ou que ecoa dentro de mim enquanto 
leio o que escrevi.

Cada vez que a ouço, que percorro o teclado infindável do piano onde me refugio,
esqueço-me do que escrevi e leio as lágrimas que não chorei sulcadas no meu rosto,
à espera que chovesse.

Que me lembre, é uma música onde tu não estás. Uma música que se calhar até nem existe, ou
não existe assim, e não passa de uma desajeitada desculpa para finalmente poder chorar.

Jorge Fallorca

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