quarta-feira, 11 de março de 2015

António Cabrita (sob a influência nem sempre nefasta do carinho) e o seu Éter

conheci o António Cabrita através dos livros dele, os publicados pela abysmo, antes de conhecer a pessoa. talvez a melhor forma de primeiro contacto com um autor. não sou das que afirmaria que é a única, dado os incríveis momentos que tenho tido o privilégio de viver com alguns autores. momentos que me fizeram não só querer ler a obra como lê-la com a influência nem sempre nefasta do carinho (o carinho como análise literária é algo que me suscita muito respeito). o António Cabrita teve as várias dimensões. começou por ser o autor da Maldição de Ondina, depois foi o Cabrita e depois o António.

Éter é o último livro do Cabrita. quando o abri vi o primeiro tremor. li várias vezes as mesmas primeiras frases:

Ainda não me saíram da pele os teus quatro tiros de caçadeira. É uma maneira de dizer que o seu eco ainda me perfura os tímpanos, devolvendo-me ao momento em que entrei no táxi e a rádio vomitou, Liquidou a tiro a mulher, o filho (que adoravas) e o gato, antes de virar o cano para si, deixando-me a boca descaída num esgar incontido, bruto.

este início está impregnado de beleza. a forma de começar a contar uma história, como uma urgência. a doçura do tom, a tragédia do conteúdo. a ansiedade de continuar, o silêncio do testemunho que fica para além das palavras. a intimidade com aquele a quem o narrador se dirige.

este é um livro em várias camadas e círculos, o que torna o livro um colosso, mais que um livro só. camadas porque explora vários sítios do nosso entendimento, da literatura, da vida e do conhecimento. círculos porque voltam todos a um presente que não é mais que uma passagem entre o passado e o futuro, ambos incompreensíveis ainda que um seja conhecido e outro não.

o texto é soluçado, gaguejado, contrariando o habitual conforto dos textos fáceis. o leitor passa pelo livro a completar com subtextos textos incompletos, invisíveis. coloca questões ao texto: onde já vivi isto? onde quer o autor chegar? a leitura não é nunca linear nem passiva é antes uma leitura de acção e diálogo. 

este é um texto que equilibra de forma orgânica o texto e o conteúdo. deixa-nos desconfortáveis, apaixonados, tempestivos. na literatura contemporânea começa a ser raro encontrar esse equilíbrio. neste livro encontramos isso e posso afirmá-lo de qualquer ponto de vista, como se lesse um livro do autor da Maldição de Ondina, do Cabrita ou do António. 


António Cabrita vive actualmente em Moçambique, em Maputo. Estudou cinema, escreveu guiões de cinema e foi jornalista e crítico literário mais de vinte anos sobretudo no Expresso. Escreveu livros de poesia, ensaio e romance. Os seus últimos livros foram publicados pela abysmo, em Portugal.