Escrever
sobre Alexandre Andrade é uma tarefa ingrata porque há escritores
de quem apetece guardar silêncio. Isto porque são escritores do
silêncio por ofício, porque defendem, ainda que intuitivamente, a
relação autor-leitor como a única relação possível. Defendem a
solidão dos dois, a mensagem passada entre um e outro, a
independência do texto face a qualquer influência que não seja a
própria leitura.
Há
um leitor de hoje, exigente, que procura esse espaço de leitura e
que, em consequência, procura esses autores que, não sendo raros,
têm de ser procurados.
O
nosso século trouxe-nos uma nova forma de ver a literatura. Os
autores transformam-se em figuras públicas, um livro é comprado sem
a certeza de que será lido, vítima do consumo imediato
proporcionado pelas redes sociais e pelas festas do livro,
lançamentos e apresentações, que se multiplicam. Há muita
celebração à volta de um livro, o que não seria grave se não
fossem, muitas vezes, auto-suficientes, independentes do texto. Se
acrescentassem leitores aos livros, se não funcionasse apenas como
montra fechada do mesmo. É fácil perceber que um leitor exigente e
atento, e ainda há muitos, queira estabelecer e dar prioridade a
essa relação íntima com o autor. Os leitores reais compreendem e
valorizam essa intimidade e foram eles que descobriram o Alexandre
Andrade.
Na
verdade, este não é o primeiro livro do Alexandre Andrade mas foi
aquele que o pôs no centro das conversas literárias. Este é o seu
terceiro livro de contos e tem ainda dois romances, mas foi com este
livro que apareceu em tops
nacionais,
listas de melhores livros do ano (as terríveis e ingratas listas),
tornou-se um fenómeno. Há muitos outros fenómenos literários do
género que tiveram diversas origens, muitos deles depois de o autor
já ter publicado inúmeros livros. O que é estranho neste caso é o
porquê desta popularidade, uma vez que o Alexandre Andrade não cabe
em nenhuma dessas categorias. No meio literário actual são raros os
fenómenos literários que se devem exclusivamente à qualidade do
texto. Aqui talvez estejamos perante um desses casos. Este livro é,
apenas, consequência de si próprio.
Editado
pelo Exclamação
é o único autor vivo da colecção Avesso.
Esta colecção começou com o propósito de publicar dez livros de
dez autores, portugueses e estrangeiros, sendo que a lista dos dez
aparece desde o primeiro livro. Não propondo uma ordem anunciou que
os dez livros sairiam conforme fossem estando prontos. Alexandre
Andrade surge ao lado de nomes como Lima Barreto ou Alphonse Allais,
autores que Rui Manuel Amaral, responsável pela colecção, diz
serem autores obrigatórios mas muito esquecidos na actual edição
portuguesa. É a própria editora que se refugia nos textos e defende
que são eles quem tem de criar uma voz própria, que os defenda e
represente. Não elaboram estratégias de promoção, de nenhum tipo.
Querem que o texto seja o que é, efectivamente, o livro.
Parece-nos
indiscutível que foi o texto dos Quartos
Alugados
quem
trouxe os leitores. O segredo do Alexandre Andrade foi-se espalhando,
a partir de uns poucos que já tinham percebido o seu potencial. A
literatura portuguesa saturou-se de lugares comuns. Como afirmámos
em cima a explosão editorial do início do século trouxe ao leitor
uma necessidade de se tornar mais exigente, logo, mais crítico e
inteligente. O excesso de lixo literário juntamente com uma
exposição pública de processos editoriais de textos que ainda não
deveriam ser publicados traz-nos um trabalho de respigadores que se
torna, no final, muito recompensador. Quando alguns bons leitores
descobrem um bom livro e espalham a notícia os leitores
multiplicam-se e transformam o livro num sucesso de vendas
exclusivamente textual.
É
neste contexto que surge a prosa de Alexandre Andrade. Quartos
Alugados
reúne
uma série de contos que têm em comum o que o título indica. O
quarto aparece aqui com duas dimensões: como parte decepada da casa,
uma parte de um todo que pouco ou nada se conhece, por um lado, e
espaço transitório, efémero, por outro.
Enquanto
cenário de casa decepada deparamo-nos com personagens que procuram
uma parte qualquer que está para além do quarto, secreta. Parte de
si, ou exterior a si, normalmente ligada à casa. O que importa aqui
é perceber que estamos sempre na esfera do privado nessa procura do
mistério. Há transversalmente a todos os contos um segredo não
revelado. A personagem procura esse segredo de forma compenetrada,
quase obsessiva. Entramos de forma discreta mas absoluta na
intimidade de cada personagem, no sentido em que as nossas obsessões
são o que existe de mais privado.
Enquanto
cenário transitório encontramos personagens que passam pelo espaço
tentando entendê-lo e revelá-lo com a urgência própria de quem
sabe que o tempo que vai ocupar aquele espaço é limitado. A
obsessão mantém-se, também neste segundo caso. Os tempos são
curtos. Os quartos são nossos transitoriamente, não há neles
espaço de apropriação ou de enraizamento. O olhar sobre eles é
quase sempre despegado, inóspito e muito livre.
Em
qualquer um dos cenários estamos perante um mistério. E o mistério
de qualquer um dos contos vale por si próprio, não se revela. O
autor tenta aqui personalizar e ficcionar o mistério, é ele a
personagem principal dos contos - nunca o seu fim mas a sua
existência real. É natural a tendência de querer resolver
problemas, e é essa tendência que o autor pretende contornar nestes
contos. Por norma um problema é visto como um pedido de resposta, o
questionamento é um meio e não um fim. A resposta ficcional às
histórias de Alexandre Andrade não é a resposta tradicional. Não
assume forma de resposta, usa o questionamento como o fim. Não há
um fim para o mistério mas há, no entanto, um encerramento, na
aceitação do próprio mistério, ou seja, os contos encerram-se em
si próprios, não ficam abertos ou suspensos. Há um ciclo que se
fecha em cada um deles. Há um abismo negro e silencioso,
estranhamente reconfortante em cada uma das histórias de Quartos
Alugados.
Há uma suspensão do tempo característica do ambiente inexplicável
e quase místico que o autor cria: “Eu respirava o tempo como um
gás intoxicante, estava sentado numa cadeira de ferro e inspirava o
tempo, expirava-o com medo do seu poder. O tempo. Agora limito-me a
estar atento aos seus abcessos contaminados pela memória e pelo
remorso, de pé sobre esta terra que piso sem deixar marca.”
Suspensão entre um tempo que, apesar de ser interior, existe também
fora das personagens, num universo nada transparente, antes opaco e
quente, como descrito no início do conto Voi
Che Sapete:
“Há quem afirme que as vagas de calor demasiado intensas têm o
poder de diluir a virtude e a moral num caso moroso de acasos e
acidentes.”. Estamos dentro de um ambiente obscuro, cru e objectivo
que, apesar do que seria expectável, no final é reconfortante e
deslumbrante.
Porque
acima de tudo há realmente um deslumbramento inteligível, que
contrasta com a absoluta pureza da linguagem, facilmente confundida
com frieza, mas que é na verdade uma extrema depuração. A procura
da palavra exacta, essencial, necessária. Nada é excessivo na
escrita de Alexandre Andrade. Nada existe para decorar ou adoçar o
texto. Tudo nos chega com as palavras certas, mesmo que a mensagem
que nos chega seja encriptada. Alexandre Andrade revela-se um
prosador de excelência, que domina de forma perfeita técnicas
literárias e ficcionais o que o transforma, mais do que num escritor
de encantamento, num escritor necessário.
Alexandre Andrade
Editora
Exclamação,
2015
Colecção
Avesso
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