Mulheres e Revolução
Maria Velho da Costa
Coisas que elas dizem:
— Se mexes aí, corto-ta.
— Isso não são coisas de menina.
— O meu homem não quer.
— Estuda, que se tiveres um empregozinho sempre é uma ajuda.
— A mulher quer-se é em casa.
— Isto já vai do destino de cada um.
— Deus não quiz.
— Mas o senhor padre disse-me que assim não.
— Dá um beijinho à senhora que é tão boazinha para a gente.
— Você sabe que eu não sou dessas.
— Estás a dar cabo do teu futuro com uns e com outros.
— Deixa-te disso, o que é preciso é sossego e paz de espírito.
— Comprei uns jeans bestiais, pá.
— Sempre dá para uma televisão daquelas novas.
— Cada um no seu lugar.
— Julgas que ele depois casa contigo?
— Sempre há-de haver pobres e ricos.
— Se tu gostasses de mim não andavas com aquela cabra a gastar o nosso.
— Põe o comer ao teu irmão que está a fazer os trabalhos.
— Sempre é homem.
Maria Velho da Costa
Elas vão à parteira que lhes diz que já vai adiantado. Elas alargam o
cós das saias. Elas choram a vomitar na pia. Elas limpam a pia. Elas
talham cueiros. Elas passam fitilhos de seda no melhor babeiro. Elas
andam descalças que os pés já não cabem no calçado. Elas urram. Elas
untam o mamilo gretado com um dedal de manteiga. Elas cantam baixinho a
meio da noite a niná-lo para que o homem não acorde. Elas raspam as
fezes das fraldas com uma colher romba. Elas lavam. Elas carregam ao
colo. Elas tiram o peito para fora debaixo de um sobreiro. Elas apuram o
ouvido no escuro para ver se a gaiata na cama ao lado com os irmãos não
dá por aquilo. Elas assoam. Elas lavam joelhos com água morna. Elas
cortam calções e bibes de riscado. Elas mordem os beiços e torcem as
mãos, a jorna perdida se o febrão não desce. Elas lavam os lençois com
urina. Elas abrem a risca do cabelo, elas entrançam. Elas compram a
lousa e o lápis e a pasta de cartão. Elas limpam rabos. Elas guardam uma
madeixita entre dois trapos de gaze. Elas talham um vestido de fioco
para uma boneca de papelão escondida debaixo da cama. Elas lavam as
cuecas borradas do primeiro sémen, do primeiro salário, da recruta. Elas
pedem fiado popeline da melhor para a camisa que hão-de levar para a
França, para Lisboa. Elas vão à estação chorosas. Elas vêm trazer um
borrego à primeira barraca e ao primeiro neto. Elas poupam no eléctrico
para um carrinho de corda.
Coisas que elas dizem:
— Se mexes aí, corto-ta.
— Isso não são coisas de menina.
— O meu homem não quer.
— Estuda, que se tiveres um empregozinho sempre é uma ajuda.
— A mulher quer-se é em casa.
— Isto já vai do destino de cada um.
— Deus não quiz.
— Mas o senhor padre disse-me que assim não.
— Dá um beijinho à senhora que é tão boazinha para a gente.
— Você sabe que eu não sou dessas.
— Estás a dar cabo do teu futuro com uns e com outros.
— Deixa-te disso, o que é preciso é sossego e paz de espírito.
— Comprei uns jeans bestiais, pá.
— Sempre dá para uma televisão daquelas novas.
— Cada um no seu lugar.
— Julgas que ele depois casa contigo?
— Sempre há-de haver pobres e ricos.
— Se tu gostasses de mim não andavas com aquela cabra a gastar o nosso.
— Põe o comer ao teu irmão que está a fazer os trabalhos.
— Sempre é homem.
Elas olham para o espelho muito tempo. Elas choram. Elas suspiram por um
rapaz aloirado, por duas travessas para o cabelo cravejadas de
pedrinhas, um anel com pérola. Elam limpam com algodão húmido as dobras
da vagina da menina pensando, coitadinha. Elas escondem os panos sujos
de sangue carregadas de uma grande tristeza sem razão. Elas sonham três
noites a fio com um homem que só viram de relance à porta do café. Elas
trazem no saco das compras uma pequena caixa de plástico que serve para
pintar a borda dos olhos de azul. Elas inventam histórias de comadres
como quem aventura. Elas compram às escondidas cadernos de romances em
fotografias. Elas namoram muito. Elas namoram pouco. Elas não dormem a
pensar em pequenas cortinas com folhos. Elas arrancam os primeiros
cabelos brancos com uma pinça comprada na drogaria. Elas gritam a
despropósito e agarram-se aos filhos acabados de sovar. Elas andam na
vida sem a mãe saber, por mais três vestidos e um par de botas. Elas
pagam a letra da moto ao que lhes bate. Elas não falam dessas coisas.
Elas chamam de noite nomes que não vêm. Elas ficam absortas com a mola
da roupa entre os dentes a olhar o gato sentado no telhado entre as
sardinheiras. Elas queriam outra coisa.
Elas fizeram greves de braços caídos. Elas brigaram em casa para ir ao
sindicato e à junta. Elas gritaram à vizinha que era fascista. Elas
souberam dizer salário igual e creches e cantinas. Elas vieram para a
rua de encarnado. Elas foram pedir para ali uma estrada de alcatrão e
canos de água. Elas gritaram muito. Elas encheram as ruas de cravos.
Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes. Elas trouxeram alento
e sopa aos quartéis e à rua. Elas foram para as portas de armas com os
filhos ao colo. Elas ouviram faltar de uma grande mudança que ia entrar
pelas casas. Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da
guerra. Elas choraram de ver o pai a guerrear com o filho. Elas tiveram
medo e foram e não foram. Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e
nas alfaias das herdades abandonadas. Elas dobraram em quatro um papel
que levava dentro urna cruzinha laboriosa. Elas sentaram-se a falar à
roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões. Elas levantaram o
braço nas grandes assembleias. Elas costuraram bandeiras e bordaram a
fio amarelo pequenas foices e martelos. Elas disseram à mãe, segure-me
aqui os cachopos, senhora, que a gente vai de camioneta a Lisboa
dizer-lhes como é. Elas vieram dos arrebaldes com o fogão à cabeça
ocupar uma parte de casa fechada. Elas estenderam roupa a cantar, com as
armas que temos na mão. Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos
outros homens. Elas iam e não sabiam para aonde, mas que iam. Elas
acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado. São elas
que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas.
in Cravo (1976).
in Cravo (1976).
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