Capa de Pedro Simões com pintura de João Alves
Uma
das facetas simultaneamente mais trágicas e gloriosas do mundo da
literatura, ao ponto de recentemente se ter cristalizado sob a forma
de teoria literária, diz respeito a uma constelação mitológica
formada por um certo género de livros significativamente mais
comentados do que propriamente lidos. Obras que viajam em comboios
invisíveis e que se inscrevem no imaginário colectivo sem
precisarem de leitores, uma vez que agarram as ideias-chave, quer
filosóficas quer iconográficas, da cultura vigente. Porém, não
menos interessantes, embora por razões diametralmente opostas, são
aqueles que são remetidos para a mais silenciosa e exclusiva
categoria dos livros mais lidos do que propriamente comentados.
Textos que vivem vidas secretas e exiladas, comentadas em murmúrios
de perplexidade, e que sobrevivem quase incógnitos ao tempo,
transfigurando-se consoante a época em que são lidos. Livros
subtilmente premonitórios e, por isso, tangencialmente desfasados da
sua época histórica, desfasados, na verdade, de qualquer época
histórica em que existam. É precisamente nessa galáxia literária
quase privada que a obra de Nathanael West, ele próprio uma difusa
personalidade de rasto discreto, e mais concretamente o romance O
Dia do Gafanhoto, orbitam.
Descendente
de judeus lituanos em fuga dos pogroms
da Rússia czarista, West nasceu em Nova Iorque em 1903 e, depois um
percurso académico pouco mais do que medíocre durante o qual, tanto
quanto nos é possível saber, não se terá interessado por outra
coisa senão ler livros, dedicou-se sobretudo à escrita, actividade
que desenvolvia em paralelo com empregos menores, tendo vivido também
por um breve período de tempo em Paris, fase em que, segundo se diz,
terá sido muito próximo de Max Ernst. Apenas a partir do momento em
que West é contratado como argumentista de cinema em Hollywood,
território geográfico e simbólico nuclear no universo mitológico
deste autor, se começa a desenhar na sua vida a perspectiva de uma
espécie de carreira. Tinha alguns amigos no meio literário, entre
eles William Carlos Williams e F. Scott Fitzgerald, e interessava-se
por misticismo e pela história das religiões. Morreu com apenas
trinta e sete anos num desastre de aviação, que vitimou também a
sua esposa, aproximadamente um ano depois de ter publicado O
Dia do Gafanhoto.
A vida de Nathanael West foi, portanto, tão
aparentemente banal e secreta como a sua obra. Não seria correcto,
no entanto, confundir essa clandestinidade com ausência de
reconhecimento crítico, uma vez que ele é actualmente considerado
um dos autores canónicos da literatura norte-americana do século
XX, graças sobretudo a “Miss Lonelyhearts”, o seu mais célebre
romance. Além do mais, a sua influência é detectátvel em autores
do pós-modernismo norte-americano e, não por acaso, no universo
cinematográfico: “O Dia do Gafanhoto” foi adaptado para cinema
sensivelmente trinta anos depois da sua publicação e é difícil,
hoje, não reconhecer nos filmes de David Lynch reminiscências dos
ambientes insólitos e das personagens bizarras que habitam as
narrativas de Nathanael West.
West
é muitas vezes caracterizado como “o mais impessoal dos escritores
americanos”, uma característica objectiva que dificulta a
classificação da sua obra. No caso de O
Dia do Gafanhoto, a força da escrita
não reside, efectivamente, nem nas personagens, nem nas suas
emoções, nem sequer na dramatização de dilemas existenciais ou
problemáticas político-filosóficas. Baseado em recursos simples e
numa engrenagem narrativa quase mecânica, este romance corresponde a
uma literatura que não pertence nem aos espaços íntimos nem se
projecta em visões sociais panorâmicas, antes propondo-se ser uma
pura literatura de imagens (ou de visões) — não surpreende,
portanto, que nele se coloque tão explicitamente em comparação as
imagéticas próprias do cinema e da pintura. Porém, e apesar do tom
distanciado e contido e da artificialidade aparente das personagens e
dos eventos narrativos que compõe o enredo de O
Dia do Gafanhoto, não é
verdadeiramente uma impessoalidade literal que transparece do texto,
mas a simulação de uma impessoalidade por meio de um jogo de
sombras. Na verdade, a personificação é um vício das próprias
personagens do livro, e nos cenários por onde elas circulam todos os
elementos parecem encenar-se permanentemente a si mesmos. Por todo o
lado se vêm máscaras, disfarces e falsificações, e nunca sabemos
exactamente quem é a voz por detrás das palavras, uma vez que o
prisma narrativo está constantemente a mudar, como se o autor nunca
estivesse realmente dentro da sua história mas antes a tropeçar
para fora do livro, ou para fora da realidade.
O
enredo de O Dia do Gafanhoto
é de uma simplicidade desconcertante: a narração num tom quase
neutro de uma série vagamente desconexa de acontecimentos
protagonizados por um grupo de personagens aleatórios sem,
aparentemente, qualquer elo em comum entre si a não ser o de
habitarem o mesmo perverso território de uma Los Angeles dominada
pela indústria cinematográfica. Este grupo de personagens inclui um
desenhador de cenários, um actor de vaudeville,
uma aspirante a actriz, um contabilista, dois cowboys
que trabalham em rodeos
e como figurantes em filmes, um empresário-anão, entre outros. No
entanto, tão importante como eles é a multidão em fuga que corre,
histérica e selvagem, pelas avenidas da cidade, hipnotizada pelo
sonho babilónico do cinema.
Tod
Hackett, o desenhador de cenários que é o protagonista do romance,
deambula pelos cenários artificiais de Hollywood, à procura de
inspiração para a pintura O Incêndio
de Los Angeles. Este quadro é a sua
grande obsessão artística, que ele pretende ver consagrada no
futuro como a reencarnação moderna das paisagens desoladoras de
pintores obscuros do século XVII, como Salvator Rosa, Francesco
Guardi e Monsu Desiderio – os grandes artistas “da Decadência e
do Mistério”, segundo West. Na pintura estão representados os
incendiários, aqueles que vão para a Califórnia para
morrer, enfeitiçados pelas visões
quase místicas da abundância e da ficção no deserto mitológico
por excelência da cultura moderna de massas, onde, como seria
previsível, nada acontece, nada, pelo menos, capaz de aliviar o
desejo irreprimível e latente de violência da multidão. Pelos
interstícios da turba, num estado mental entre o sonho
e o sono
da realidade, vagueiam os inadaptados, aqueles que são incapazes ou
que se recusam a deixar ser capturados pela magia satânica dos
tempos, em fuga desesperada do tumulto apocalíptico. O quadro O
Incêndio de Los Angeles, à semelhança
do próprio livro, sugere a representação do colapso civilizacional
de que a multidão é a mensageira e os marginais os desertores, um
mundo artificial de miragens e fantasmagorias cinemáticas onde
predomina a frustração e o tédio.
De
superfície aparentemente inócua e impessoal, porque sufocada pelas
suas próprias máscaras, esta obra de ficção descreve uma
premonição da catástrofe, cujos sinais se encontram disseminados
por todo o texto, desde as macabras lutas de galos até aos colossais
montes de lixo acumulados nos estúdios de cinema, passando pela
alusão à praga bíblica do título do livro e pelo uivo da sirene
da ambulância da cena final do livro. Com a distância do tempo,
é-nos legítimo interpretar “O Dia do Gafanhoto” como uma
parábola da atmosfera de tensão e mal-estar que precedeu a Segunda
Guerra Mundial, uma vez que nele ecoa o rumor silencioso dos
sobressaltos de massas de que o nazismo era, na época, a
manifestação mais poderosa. Podemos também reconhecer na obra uma
evocação da célebre Dust Bowl,
as tempestades de areia negra que se seguiram à seca que atingiu as
Grandes Planícies dos Estados Unidos da América logo após à
Grande Depressão, causando um desastre ambiental, agrícola e social
de grande escala que motivou uma onda deslocações migratórias em
massa, sobretudo em diáspora rumo à Califórnia. É inegável que
por entre atmosfera vagamente surrealista do enredo, reminiscente do
surrealismo simultaneamente onírico e inquietante de Max Ernst, se
pressente uma frequência de onda sinistra e ressonante desse rumor
críptico do tempo. Porém, perante uma obra de ficção tão
elíptica e alusiva como esta, qualquer interpretação não pode
senão ser assumida como circunstancial e balizada pelo seu tempo.
Analisado
em perspectiva, este livro parece ecoar ele próprio no presente,
sendo essa precisamente a grande linha de força das visões
tumultuosas e grotescas que nele se projectam e que o poeta W. H.
Auden, grande admirador de West, considera serem as parábolas de um
“Reino do Inferno”. As actuais circunstâncias políticas e
sociais parecem estranhamente similares às da época em que O
Dia do Gafanhoto foi escrito: a crise
financeira de 2008, cujos efeitos sísmicos ainda hoje se fazem
sentir, a atmosfera de alarme perante alterações climáticas e a
convulsiva e potencialmente apocalíptica situação geopolítica num
período histórico de aparente transição de poder. Em 2018, tal
como em 1939, ouvem-se os tambores ocultos da civilização e sopram
ventos que pressagiam tempestades, e no terceiro milénio, tal como
na primeira metade do século XX, confrontamo-nos com alterações
tecnológicas que estão a provocar a emergência de uma nova era
cibernética baseada em simulações virtuais da realidade. Se em
tempos imemoriais as ambições do homem se afundavam tragicamente
nos oceanos, transformando-se então no sublime “sargaço da
imaginação”, em Hollywood, por seu turno, os sonhos que nos
assombram morrem nas lixeiras dos estúdios. No terceiro milénio, os
sonhos também nascem e morrem num ecrã, mas agora num ecrã
tridimensional e imersivo que, no entanto, nunca cumpre a sua
profecia de imortalidade. No presente, assim como num período
histórico do século passado não tão distante como hoje nos
parecerá, as imagens que nos chegam do mundo compõem um quadro
mental de uma civilização pré-caótica na iminência de um
desastre que, porém, como em Blanchot, não chega nunca a ocorrer
realmente, excepto na sua dimensão alegórica e burlesca.
West
parece querer anunciar-nos que a catástrofe do futuro (o incêndio
terminal, o grande “holocausto de chamas”) será total ou não
será mais do que o espectro da catástrofe por vir do último homem
da história, ficcionando-se a si mesmo no infinito arquivo morto de
reproduções e personificações de uma realidade já anacrónica,
ultrapassada pelos duplos de si própria. A vertigem contemporânea,
à semelhança da vertigem da representação (ou, mais precisamente,
da ficção) em que se lançam as personagens deste livro, parece
capturar-nos num sono do qual, tal como Homer Simpson, a personagem
mais icónica de
O Dia do Gafanhoto,
receamos não conseguir acordar, isto é, um sono que pode
potencialmente transformar-se em morte sem que disso nos apercebamos.
Na era da ficção absoluta, esta nova forma de morte corresponde a
um puro estado de transição, suave e indolor, para uma realidade
expandida em que, aparentemente, a única linha de fuga que
entrevemos no horizonte é a do “voo uterino” da letargia e da
auto-absorção do humano no sonho de si mesmo. No vasto “lá
fora”, porém, a atmosfera prá-apocalíptica é a emanação
visível do pânico da humanidade perante a eventualidade de ser
forçada a reabitar a sua própria vida, descobrindo nela o vazio que
a paralisa e a faz naufragar num mundo de miragens insubstanciais que
são o combustível do incêndio da catarse e da regeneração do
homem pela violência.
O
Dia do Gafanhoto exorta-nos a observar
a paisagem e a decifrar os sinais. Prepare-se, leitor: neste livro
não se passa nada.
Manuel João Neto
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