segunda-feira, 19 de setembro de 2011

foi assim mais um Para Acabar de Vez com a Leitura

O Cânone ou a vã glória de ler e escrever

Mais um Chapitô, mais uma quarta-feira, cheio de gente boa e conversa que sem microfone se estenderia pela noite toda. Conversas cruzadas, palavras sussurradas pelas mesas. Cada um com o seu cânone. No jantar houve quem dissesse que este tema não era polémico. Que era aceite por todos quem são os grandes autores canónicos. A questão que logo depois começou a surgir e que nos levou a uma agradável conversa dentro do tanque foi que definição é essa de cânone. Houve quem definisse o cânone com o anti-cânone. Porque a tese tem sempre a sua antítese e falar por contraposição pode tornar o tema muito mais divertido.
Tínhamos nomes de grande gabarito, que se portaram à altura. Estava tudo em harmonia, os intervenientes, o público, o tanque, o Chapitô.
Miguel Real iniciou a conversa fazendo uma viagem pelo cânone português pós 25 de Abril. A partir de 1974 o cânone sofreu uma alteração brusca sendo afastados alguns nomes das leituras obrigatórias nas escolas. Pela primeira vez escrevem-se manuais escolares, com indicações de leitura, trazendo à tona autores proibidos e maltratados até essa data pelo regime anterior. Neste caso assistimos ao Estado a interferir directamente na definição de cânone. Nomes como Sousa Costa, Queirós Ribeiro, D.João da Câmara ou Augusto Gil são afastados do cânone e entram nomes como Ferreira de Castro (um escritor muito lido e respeitado já durante o Salazarismo), Cesariny, O'Neill, Herberto Helder, Fernando Pessoa (até aí só se lia a Mensagem), e neo-realistas como Alves Redol, Manuel da Fonseca, Gomes Ferreira. Muitos destes autores estão vivos em 1974, sendo que até aí se convencionava, salvo algumas excepções, que os autores entravam no cânone depois da sua morte, com a sua obra consolidada. Alguns autores desconhecidos até essa data começam agora a ser lidos como Gabriela Llansol, Ruben A., Nuno Bragança ou Yvette K. Centeno.
No pós 25 de Abril o cânone assentava em duas premissas: reflexão e militância. Interessava menos a história que era contada do que um testemunho e reflexão do que acontecia no país, as transformações necessárias e as consequências da ditadura. Queria-se combater o ruralismo do Estado Novo banindo os livros que reflectiam o homem salazarista. Combatia-se o nacionalismo com o cosmopolitismo, o mundo alarga os horizontes e as realidades culturais de outros países entram na nossa literatura. A partir da década de 80 os romances deixam de reflectir Portugal, podendo ou não reflectir outras realidades se bem que uma grande parte deles reflicta somente realidades alegóricas e abstractas. É também nesta década que o cânone "range". Começam a levantar-se vozes contra o cânone do pós 25 de Abril. Luísa Costa Gomes escreve um livro onde afirma que não vai falar do Império, nem do 25 de Abril, nem da Guerra Colonial. Rui Zink edita o Hotel Lusitano onde ataca autores com Barthes ou Deleuze, inquestionáveis até então. Os escritores desintelectualizam a literatura dando-lhe um tom mais ligeiro, jornalístico. Francisco José Viegas escreve sobre futebol e Dinis Machado policiais.
No séc XXI é a escrita que prevalece a cima da história que é contada. João Tordo, David Machado, Gonçalo M. Tavares, Patrícia Portela ou Afonso Cruz lançam-se numa escrita tabalhada, única e original. Brincam com imagens e realidades. São realistas sem serem fiéis à realidade. É sobre a linguagem que assenta a originalidade. Há menos unidade, mais pluralidade.
Maria do Rosário Pedreira intervém discordando de alguns pontos focados por Miguel Real afirmando que o cânone não tem a ver com o presente mas sim com o passado. Os textos da Bíblia foram os primeiros a ser canonizados, por uma autoridade que lhes estava automaticamente atribuída pelo seu carácter sagrado. Depois disso pluralizam-se mas são sempre canonizados por uma autoridade. Existiam três tipos de autoridade: a crítica, a academia e os professores. Para que uma obra seja canónica esta obra tem de ter qualidade não no momento em que é escrita mas numa fase tardia em que é possível observar que essa qualidade se mantém. Uma obra canónica tem de oferecer uma voz diferente e original que muitas vezes traz influências de outras obras, ainda que o possa fazer de forma inconsciente. A qualidade não é no entanto uma característica que garanta a presença de um livro num cânone futuro. É importante que essa obra seja divulgada e lida, pelo que a não edição de um livro ou a edição de poucos exemplares por uma editora pequena pode impedir a canonização. Para Maria do Rosário Pedreira o cânone é volátil, cresce e diminui, muitas vezes orientado por razões extra literárias. Para se ser um verdadeiro escritor este não deve procurar o cânone, deve sim escrever porque lhe é essencial. E ser realmente um escritor, uma vez que assinar um livro não é ser escritor.
Juva Batella inicia a sua intervenção com uma fábula: o professor grilo dá uma aula e o director grilo passa pela sala e ouve. O professor grilo diz que o canto dos grilos é o mais harmonioso de todos, mais do que os cantos dos pássaros que usam a garganta para cantar, o que não faz sentido. O director grilo fica muito feliz ao perceber que nada mudou. Harold Bloom (a partir de agora conhecido como Sr. Haroldo) é como o director grilo no seu livro O Cânone Ocidental. O Sr. Haroldo acredita que o que interessa é a estética numa lista de autores que lutaram contra o esquecimento, normalmente autores mortos, brancos, europeus, homens. Para o Sr. Haroldo o cânone centra-se em Shakespeare (a partir de agora conhecido como Sr. Guilherme), pois o que ele escreve é real e reconhecível durante os séculos seguintes. O cânone é a origem do que hoje está dito e escrito. Juva Batella cita Paul Valery para ilustar esta afirmação: o leão é feito de carneiro assimilado. Na verdade muitos quiseram lutar contra o cânone acabando também por isso por entrar nele, como é o caso de Borges.
Luís Ricardo Duarte fala do cânone referindo a sua viagem do Verão à Islândia. Antes da viagem procurou alguns livros que deveria ler para conhecer o país e pensou nos livros que daria a um estrangeiro numa visita a Portugal. O cânone dele seriam esses livros, um cânone mais volátil. Uma obra canónica cria o seu espaço, surpreende sempre, permite releituras. Deve ser original e único. Os jornalistas culturais fazem o filtro, são importantes para nos orientar e apresentar leituras ou não leituras. Falar de cânone para Luís Ricardo Duarte é falar dos livros que levaríamos para uma ilha deserta, é portanto um cânone mais pessoal.
Nuno Seabra Lopes, no público, coloca uma questão depois de ouvir todas estas intervenções que colocam o cânone em posições tão díspares. Hoje é difícil estabelecer quem é a autoridade. Existe um cânone? Vários? Quem é a autoridade? Eurídice Gomes, moderadora responde que hoje em dia, com o mercado que existe, é difícil estabelecer um cânone e que o melhor talvez seja pensarmos no cânone temporalmente, à distância, e não nos dias de hoje. Juva Batella defende que não existe uma única autoridade, que o cânone é definido por todos os que hoje em dia falam dele, inclusive nós no tanque do Chapitô. Acrescenta ainda que para entrar no cânone temos de lutar com ele de igual para igual, como Borges fez. Luís Ricardo Duarte defende que deveria ser a Universidade, como foi em tempos, a definir o cânone. No entanto admite que hoje essa canonização está mais díspar. Aníbal Fernandes, tradutor, cria um cânone próprio na selecção de obras a traduzir e estabelece o cânone para aqueles que o admiram e respeitam as suas escolhas. No entanto defende ainda que os livros fazem um caminho que nem sempre depende totalmente da sua autonomia e qualidade. A literatura islandesa não está mais divulgada pela dificuldade da língua.
A sessão terminou com chave de ouro quando Andreia Moreira pede aos cinco do tanque que lhe sugiram um livro do seu cânone. Luís Ricardo Duarte sugeriu a Odisseia ou a Ilíada e O Deserto dos Tártaros de Dino Buzzatti. Maria do Rosário Pedreira sugere as Obras Completas de Yeats. Eurídice Gomes sugere Aventuras de João Sem Medo de José Gomes Ferreira. Miguel Real a Viagem à Índia de Gonçalo M. Tavares. Juva Batella diz que até podia sugerir livros do Sr. Guilherme mas que não o vai fazer e fala do Sargento Getúlio do escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro e a Ovelha Negra e Outras Fábulas de Augusto Monterroso.
Foi uma noite boa. Descobrimos que a questão é mesmo a referida no início: o que é para cada um o cânone. Quando é que podemos falar de cânone. O cânone é nosso? É instituído por quem?
Como em qualquer boa sessão, não chegámos a nenhuma conclusão, ficámos só a saber mais.
Um bem haja ao Chapitô, mais um. Um bem haja ao  público presente. E um maior bem haja aos nossos queridos convidados que tanto nos fizeram discordar e pensar. É esse o caminho do Para Acabar de Vez com a Leitura.

1 comentário:

argumentonio disse...

yupiiiiiiiiiiiiiiii...!!!

obrigado, tanto ;_)))