O séc XXI ainda nos pede para falarmos da condição da mulher nas artes. Ainda que seja possível verificar muitos avanços, há algumas áreas onde a dificuldade persiste. O facto de estarmos numa época de avanços culturais e sociológicos no que respeita as categorias de género, apenas dificulta o diagnóstico, muitas vezes é dentro de quatro paredes e na intimidade que as dificuldades se criam. Apesar disso, um olhar mais atento consegue descobrir alguns indicativos com facilidade. Por exemplo, nas áreas artísticas, na esmagadora maioria das vezes, as mulheres não têm trabalhos tradicionais, com horários e facilidades na gestão da doença ou dos cuidados familiares, e é inegável que são essas as funções ainda destinadas à mulher – seja por contexto e pressão social, seja por, e cada vez com mais força, uma dificuldade relacionada com a interpretação de géneros em que qualquer um deles, homens ou mulheres, não se consegue, naturalmente, desprender do papel que lhe foi atribuído ao longo de séculos.
Assim é importante olharmos para a evolução do papel da mulher nas artes, nomeadamente na literatura, ao longo do século XX para melhor percebermos o sítio onde estamos. A literatura portuguesa escrita por mulheres, no séc. XX, passou por muitas mudanças e alterações, as mesmas que a própria história das mulheres em Portugal, inegavelmente ligada à história do feminismo em Portugal. O movimento feminista português foi sempre um movimento moderado, nunca declaradamente subversivo nem violento, mais atento à satisfação das suas reivindicações pela força da persuasão, do direito e da educação do que pela força da violência e das manifestações. Houve muitas e diferentes reivindicações mas a grande luta feminista do início do séc XX era uma luta sobretudo pela liberdade de escolha da mulher. Eliana Guimarães, no II Congresso Feminista Português (1928), afirma: “O que queremos nós para as mulheres? Muito simplesmente isto: o pleno desenvolvimento da sua personalidade. Que, criança, ela seja instruída para que, adulta, ela possa exercer a sua actividade de harmonia com as suas aptidões sem que o ensino lhe seja negado ou o seu campo de acção cerceado apenas porque é mulher. E queremos também que o seu esforço seja reconhecido e recompensado como merece.”
A forma como o séc XX vê e condiciona a mulher vem de muito para trás. Segundo a cultura ocidental a mulher identifica-se com o lado biólogico do ser humano, enquanto o homem surge como um animal cultural. Esta ideia foi bem ilustrada por Baudelaire que afirmava que la femme est naturelle, c’est à dire abominable. A imagem da mulher esteve desde sempre ligada à ideia de introspecção, emoção descontrolada, irracionalidade e desordem por oposição ao racional, génio criador, inteligência, atributos ligados à ideia de masculinidade. A juntar a esta ideia o séc. XIX trouxe à mulher as suas tarefas de esposa e mãe, em exclusividade, mesmo nas classes mais baixas que tinham de juntar essas funções ao trabalho que não podiam dispensar.
Quando falamos de mulheres escritoras do séc. XX temos ainda de ter presente que durante todo o século as mulheres eram muito pouco instruídas, eram poucas as que sabiam sequer ler e escrever. Assim, temos de ter presente que estamos a falar de um grupo restrito e pequeno, de uma classe instruída, muitas vezes mulheres que por via do casamento ou familiar já viviam num meio literário, com hábitos culturais ligados à escrita e à leitura. Cedo muitas dessas mulheres perceberam a importância de ter uma voz activa, perceberam qual o papel da literatura, bem como a responsabilidade que acarretava o facto de a publicação dos seus textos ter uma necessária repercussão em todos os que as liam. Essas escritoras, que para publicar tinham não poucas vezes de ser inteligentes e publicar livros que aparentemente não questionavam a ordem vigente, tornaram-se exímias a questionar essa mesma ordem entre linhas, passando muitas vezes mensagens subliminares e, outras vezes, através de uma descrição realista do que era o papel da mulher e a sua incapacidade em, dado o contexto, conseguirem usar da sua livre escolha, sendo autónomas. Através da escrita elas incentivavam as leitoras a procurarem essa autonomia, empoderando-se e confiando nas suas capacidades enquanto figura responsável pelos seus actos. Na verdade a função daquelas mulheres quando escreviam era cumprir um papel que a cultura muito mais tarde vai assumir de forma mais aberta, nomeadamente durante o neo-realismo dos anos 40 ou 50, ou, de forma mais alargada, em grande parte da literatura do pós II Guerra Mundial – um papel de denúncia e aberta comunicação com o leitor, assumindo a responsabilidade que essa comunicação acarreta.
Era importante então criar estratégias para chegar ao maior número de mulheres, e não apenas através da literatura. E efectivamente não foi só com a literatura que este propósito se cumpriu. Exemplo disso foi a escritora Maria Lamas (1893 – 1983). Maria Lamas foi uma activista feminista, pelos direitos das mulheres, nomeadamente pela sua autonomia face a qualquer tipo de domínio externo – seja de sustento, familiar ou cultural. Maria Lamas foi jornalista da revista Modas e Bordados do Jornal O Século de 1928 a 1947, sendo sua directora a partir de 1930. A sua acção concentrava-se numa rúbrica chamada O Correio de Joaninha, uma espécie de consultório sentimental, absolutamente anónimo, onde as mulheres colocavam todo o género de perguntas. Era sempre Maria Lamas quem respondia, com o pseudónimo de Tia Filomena. Era aqui que Maria Lamas chegava com mais facilidade às mulheres disfarçando os seus conselhos de conselhos vagos e generalistas que iam dos bordados à vida íntima. Foi naquele ambiente aparentemente inócuo e feminino que durante quase 20 anos Maria Lamas influenciou centenas de mulheres a tornarem-se mais livres, autónomas, responsáveis pelo seu caminho. A revista teve um sucesso estrondoso, autonomizou-se do jornal, inspirou um programa de rádio e, inclusivé, deu origem em 1946 ao Movimento de Acção Juvenil Joaninha. No ano seguinte Maria Lamas resolve organizar na Sociedade Nacional de Belas-Artes em Lisboa uma exposição intitulada Livros de Escritoras de Todo o Mundo, o que ditou o fim da sua colaboração com a revista, ordenado pelo Estado, dando-se início a uma perseguição política de que Maria Lamas escapara, de forma surpeendente, durante duas décadas à frente da revista.
O trabalho do activismo feminista na cultura está ainda a meio do caminho, ainda que agora a censura esteja sobretudo ao nível privado, o que torna muito mais difícil perceber qual o caminho a tomar. Para isso são certamente importantes as mesmas mulheres que assumem a defesa da autonomia e igualdade de oportunidades para todos os géneros, tanto num nível público como privado, numa descoberta do que ainda falta fazer nos mais diversos níveis da acção da mulher e da sua vida enquadrada social e culturalmente. Porque a história não se repete porque não é igual, mas é possível assistirmos a retrocessos civilizacionais se não soubermos estar atentos e percebermos que por mais que possa a muitos parecer desarticulado e descontextualizado o feminismo tem ainda muito caminho para fazer.
Rosa Azevedo
Artigo publicado na revista Venduta 13, em Dezembro de 2019