segunda-feira, 22 de setembro de 2014

sobre as razões da edição



Muitas vezes me disseste que esse livro me transformou à medida que o ia escrevendo. "Depois de o teres concluído, já não eras o mesmo". Penso que te enganavas. Não foi o tê-lo escrito que me permitiu mudar; foi ter produzido um texto publicável e vê-lo publicado. A publicação mudou a minha situação. Conferiu-me um lugar no mundo, conferiu realidade ao que eu pensava, uma realidade que excedia as minhas intenções, que me obrigava a redefinir-me e a ultrapassar-me continuamente, para não ficar prisioneiro nem da imagem que os outros tinham de mim nem de um produto, pela sua realidade objectiva, tornado outra coisa que não eu. Magia da literatura: fazia-me aceder à existência tal qual eu me tinha descrito, escrito na minha recusa de existir. Esse livro era o produto da minha recusa, era essa mesma recusa, e, através da sua publicação, impedia-me de prosseguir nessa recusa. Precisamente o que eu tinha esperado e que só a publicação me poderia dar: ser obrigado a comprometer-me para além do que eu podia pela minha vontade solitária, e a colocar problemas, a prosseguir fins que eu não definira sozinho.

Carta a D.
História de um amor
André Gorz
Pianola

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Flanzine #5 CAMA

anda por aí uma fanzine com forma de revista. é dado adquirido que as formas e categorias têm de ser questionadas, mais até do que revistas. e a Flanzine será aquilo que quiser ser sem dar cavaco a ninguém.

o número #5 é sobre a CAMA. será porventura fácil imaginar para onde os autores fazem descambar o tema? talvez não.
os autores não se conhecem e é-lhes pedido um texto sobre a CAMA. o fio condutor existe e é claro mas é maior do que a Flanzine, está não só nela como nos autores, nestes e nos outros que não escrevem aqui. um tom narrativo, uma forma clara e de grande mestria com que se fala do quotidiano, com linguagem quotidiana, mas com excelência literária. em bom, portanto. há excepções, claro, mas não vou referir excepções cada vez que se fala de um fio condutor. mantenhamos assim como entendido à partida.

a CAMA assume aqui um ciclo perfeito e fechado - por um lado o nascimento e um qualquer início. depois um erotismo latente e crescente sem idade ou hora do dia. depois a morte, claro, que não há nascimento sem ideia de morte. erotismo talvez, mas adiante.

a CAMA é assim tema fechado em si, auto significativo e em estado bruto: "Ir para a cama é tão satisfatório que não exige descrição, basta dizer: fui com el@ para a cama. Curtimos na casa de banho, comemos-nos no adro da igreja ou fizemo-nos na disco exige sempre descrição detalhada para percebermos até que ponto a coisa foi séria." (Sermente). A CAMA é espaço horizontal, erótico, sensual, como o poema: "A cama talvez seja o melhor sítio / para o poema. / O poema: / ser horizontal, húmido, bom de foder." (Inês Fonseca Santos). A CAMA é espaço de segurança porque a haver monstros estão por baixo, nunca por cima. na verdade cada pessoa traz consigo uma cama por cada noite dormida, tantas formas pode ter essa cama como os textos que se podem escrever sobre ela. em liberdade que assume a Flanzine. em total liberdade literária, textual e até a maior liberdade de todas, a dos textos que não têm nome.

a Flanzine é apresentada esta sexta, 19 de Setembro, n'o Bom, o Mau e o Vilão, em Lisboa, a partir das 19h30.


do senhor teste # dia 3


segunda-feira, 15 de setembro de 2014

do senhor teste # dia 2



a SNOB, a livraria que pertence à minha teia


abriu uma livraria em Guimarães, a Snob, uma livraria que antes de existir já existia pela mão do Duarte, da Emília e do Eduardo, noutros projectos e nas ideias que estão por trás da Snob. esta livraria entra na linha do que tenho andado a ver e ouvir, uma livraria que não é só uma livraria, é uma ideia, assim como tenho encontrado editoras que não são só editoras, são editoras e são ideias. autores que são ideias. e a ideia é que podemos levar avante projectos que necessitam de uma vertente comercial sem abdicar de qualquer vértice de qualidade. já o tinha dito relativamente ao sr teste e a snob é um senhor teste nortenho e não o é por acaso, é-o por se deixar influenciar, por ouvir, aprender e, lá está, ter a mesma ideia.
fui ao Porto este fim-de-semana. conheci o Duarte na Feira do Livro do Porto, na banca da livraria, onde me agrafei uma tarde inteira (o Duarte além de talentoso livreiro&etc é de uma simpatia avassaladora). reconheci os livros todos que estavam expostos e senti que o Duarte estava na teia. é como se todos os da teia partilhássemos um segredo que começa a não ser segredo nem o quer ser. é o segredo do Duarte, do Ricardo, d’a tua mãe* da Marta, da douda do Nuno, da averno da Inês, da texto sentido, da eclusa, da pianola, de tantos outros. um segredo partilhado e mal guardado porque se começa a espalhar em forma de boato. há aí gente boa a escrever, outros a editar e outros a vender. uma teia que só é independente porque se recusa a comprometer a qualidade literária, a pertinência do sentido e a musicalidade dos livros.
foi bom ir ao Porto e ver de perto a Snob. Guimarães será a próxima paragem. aqui em baixo deixo-vos as paragens da Snob e as imagens da banca na Feira do Livro do Porto onde vão ver, claras e fortes, as linhas da teia.

facebook Snob
site Snob







quarta-feira, 10 de setembro de 2014

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

sobre as editoras independentes

o projecto avança de forma tempestiva, com entrevistas, conversas e planos. em cada entrevista surgem novas ideias e pontos de vista o que me faz prever que se não puser travão a isto posso estar trinta anos a desenvolver esta ideia o que não era mau de todo.
seja como for optei por não publicar nenhuma entrevista (ainda que estejam todas transcritas) para que os entrevistados estejam completamente à vontade com o que dizem e com a forma com que o dizem. vou antes escrever um artigo sobre cada entrevista. o primeiro já saiu os outros vêm a caminho. obrigada a todos pelo apoio, tardes de conversa, ideias, mensagens, e-mails, viagens e livro.


continuem a acompanhar o projecto na página de Facebook Editoras e autores in-dependentes de quê?



quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Valério Romão, um dos lados do triângulo

foi num fim de tarde que encontrei o Valério Romão, numa esplanada do nosso bairro. como não era uma pessoa desconhecida (em nenhuma frente) nem uma entrevista nada formal, o gravador começa a gravar a meio de uma frase e acaba por ser esquecido. falo demais, como costuma acontecer quando é um Valério que tenho à minha frente, e duas imperiais. não devia. anotar a falha.

escolhemos ser escritores quando queremos escrever. depois percebemos que queremos ser lidos e que publicar é uma urgência e uma necessidade orgânica e natural. que se encaixa na própria função de se ser escritor. o Valério é um escritor com uma consciência interna da sua própria função. opta por não se ver de fora, de forma exterior, a partir dos olhos dos outros. vive dentro do triângulo escritor - editor - leitor e preserva essa intimidade como a única que interessa. vê a sua independência não como uma bandeira ou manifesto mas como a única forma possível, depende apenas desse triângulo. para isso teve algumas “coincidências generosas” como lhes chama. João Paulo Cotrim, da Abysmo, recebeu das mãos de António Cabrita, amigo comum, a notícia do novo escritor. da coincidência generosa parte uma relação que encaixa não só no perfil do escritor como no perfil do editor. de uma relação profissional nasce uma confiança que equilibra bem e de forma funcional uma óbvia fórmula de sucesso.

não é por acaso que o triângulo funciona. um livro vive de um autor que o escreve para um leitor que o lê e passa por um editor que torna esta relação possível, não apenas como mensageiro mas parte activa do processo. se as três partes se respeitarem e entenderem mutuamente o resultado é positivo.

Valério Romão é hoje um escritor conhecido do público. não sabe bem em que altura se deu o passo que o levou a ser conhecido desta forma. o Valério não acredita em parte da sua popularidade. mantém-se escritor com as mesmas rotinas que tinha antes deste passo. admite no entanto que a Granta e a opção de Carlos Vaz Marques em arriscar a publicação de um escritor com uma obra tão curta e ainda tão desconhecida tiveram um papel decisivo. é público que Carlos Vaz Marques sabe o que faz. neste caso houve mais do que um casamento perfeito: o Carlos que dá o pontapé para que mais gente o leia, o João Paulo que publica os escritores novos em quem acredita intrinsecamente e o Valério que escreve bem, com convicção, sob o olhar atento de pessoas em quem confia como o António Cabrita.

é realmente difícil falar em angústia da influência no caso desta geração. faz parte da forma como eles se criaram enquanto escritores - acreditarem que a sua obra tem de ser única e original, assumindo, no caso do Valério, os ecos imensos de muitas leituras. as editoras pequenas que surgiram neste último ano trouxeram ao mercado editorial dezenas de novos escritores, dando-lhes importância e peso de forma desigual, é verdade, mas sempre confiando nessa mesma capacidade de serem únicos, autênticos e com inegável qualidade literária.

é visível a forma tranquila e honesta com que Valério vive a escrita. lima-lhe todas as arestas mas acredita que o seu conteúdo é orgânico. digo honesta porque o Valério se recusa a sair do triângulo que ele acredita ser o único possível para que um escritor não seja apenas um autor de um livro. o Valério é um escritor. com uma sensibilidade rara, um domínio seguro e claro da língua, os amigos certos, as escolhas certas e um editor que acreditou naquele primeiro livro com a convicção e confiança com que acredita já nos que ainda não estão escritos. o Valério é assim um caso de sucesso literário que só pode significar sucesso editorial. mas que no limite, podia só ser literário que o objectivo daqueles livros estava cumprido. e neste triângulo está o segredo, que não parte de opções por parte de cada um dos lados, e sim de generosas coincidências. e tenho a sensação que o futuro dirá que muitos belos frutos nos trará ainda esta generosidade.
- Não pode ser assim tão grave, não ler!
- É um escritor que mo diz? Vou-lhe explicar, meu caro: quando os homens desenvolvem estilos de sobrevivência na miséria crónica, sobrevém-lhes a necessidade de ajustarem a visão de si próprios à visão de um mundo sem perspectivas. É assim do seu interesse diminuir, o possível, o risco de ter uma alma. Em África fala-se imenso do combate à pobreza, à Sida, dos direitos humanos, mas isto não passa do modo como se camufla o desapego essencial: o homem putrefaz o homem. O único antídoto estava no símbolo, nessa metade de nós que só nos chega do exterior e que o intérprete consagra. Perdido o leitor perde-se a chave para o símbolo: a hospitalidade, a ideia grata de que só pelo outro, pela visita do mundo, existimos. Fica o mundo em liquidação.
[...]
- Bom, era uma pergunta de retórica. Mas começar por África, tão flagelada?
- Quem lhe disse que começou em África? Embora África esteja mais carenciada de ser restituída aos símbolos, porque aqui se delapida a vida deliberadamente. E há mais de três anos que ninguém lê Monsieur Teste, abaixo do equador...


António Cabrita
A Maldição de Ondina
Abysmo

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Primeira elegia

Se eu gritar, quem poderá ouvir-me, nas hierarquias
dos Anjos? E, se até algum Anjo de súbito me levasse
para junto do seu coração: eu sucumbiria perante a sua
natureza mais potente. Pois o belo apenas é
o começo do terrível, que só a custo podemos suportar,
e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha
destruir-nos. Todo o Anjo é terrível.
Por isso me contenho e engulo o apelo
deste soluço obscuro. Ai de nós, mas quem nos poderia
valer? Nem Anjos, nem homens,
e os argutos animais sabem já
que nós no mundo interpretado não estamos
confiantes nem à vontade. Resta-nos talvez
uma árvore na encosta que possamos rever
diariamente; resta-nos a rua de ontem
e a fidelidade continuada de um hábito,
que a nós se afeiçoou e em nós permaneceu.
Oh, e a noite, a noite, quando o vento, cheio do espaço do universo
nos devora o rosto -, por quem não permaneceria ela, a desejada,
suavemente enganadora, que com tanto esforço se ergue frente
ao coração isolado? Será ela para os amantes menos dura?
Ah, um como o outro eles se ocultam de sua própria sorte, apenas.
Acaso não o saibas já? Lança de teus braços o vazio
em direcção aos espaços que respiramos; talvez que as aves
num voo mais íntimo sintam o ar assim expandido.
Sim, na verdade as Primaveras precisavam de ti. Muitas estrelas
aguardavam que nelas reparasses. Para ti
se erguia uma vaga no findo passado; ou,
ao passares por uma janela aberta,
um violino entregava-se-te. E tudo isso era para ti uma missão.
Mas soubeste cumpri-la? Não te distraía a contínua
expectativa, como se tudo te anunciasse
a Amada? (Como a poderias acolher em ti,
se grandes e estranhos pensamentos te invadem
ou abandonam ou em ti permanecem ao longo da noite?)
Se porém estás saudoso, canta as Amantes, cujo
celebrado sentir todavia está longe de ser imortalizado.
Canta, e como tu as invejas quase, as que foram abandonadas, cujo amor
te parece maior, do que o daquelas que o viram apaziguado. Não cesses
de recomeçar esse sempre insuficiente louvor;
e pensa: o herói dura sempre; até a sua queda mais não foi
do que o simples pretexto para o seu derradeiro nascimento.
Mas as Amantes são acolhidas de novo na esvaída natureza,
pois as forças que tudo isto produzem
não existem duas vezes. Terás tu cantado de Gaspara Stampa
já suficientemente a lembrança, para que a jovem mulher
a quem o amado deixou, possa sentir
pelo sublime exemplo de uma tal Amante: Ah, ser como ela!
Não será tempo de estas dores antiquíssimas se tornarem
finalmente fecundas? E não será tempo de nós,
os que amamos, nos libertarmos de quem amamos, como trémulos vencedores?
De sermos como a flecha que, vencendo o arco, se solta, toda ímpeto,
passando a ser mais do que ela própria? Pois em nenhum lugar se permanece imóvel.

Vozes, vozes. Ouve-as, ó meu coração, como outrora apenas
os santos as ouviam: de tal modo que o apelo imenso
os erguia do solo; contudo permaneciam ajoelhados,
inconcebivelmente, a isso destentos:
ouvir: era assim todo o seu estar. Mas tu não poderias sequer em ti escutar
a voz de Deus. Ouve, porém, o sopro, ininterrupta mensagem
que a ti chega, modelado no silêncio.
E agora ouves o murmúrio dos jovens que morreram.
Na verdade, onde quer que entrasses, fosse
em igrejas de Roma ou de Nápoles, não era o destino deles que no silêncio te interpelava?
Ou, então, uma inscrição sublime te impressionava,
como a da lápide que há pouco viste em Santa Maria Formosa.
Que esperam todos eles de mim? tenho de serenamente retirar-lhes
o véu de injustiça que por vezes perturba
o puro movimento dessas almas.

É certo ser estranho não mais habitar a terra,
não mais agir conforme o que mal acabáramos de aprender,
não mais dar às rosas e a todas as outras coisas identicamente promissoras
o significado do humano futuro;
não mais ser o que se tinha sido
em infinitamente angustiadas mãos, e abandonar até
o próprio nome, como se fosse um brinquedo quebrado.
É estranho não mais desejos desejar. Estranho,
passar a ver sem conexão, disperso pelo espaço,
tudo o que antes tinha unidade. Estar morto
é laborioso e cheio de recomeços, até que aos poucos
nos apercebamos da eternidade. - Mas todos os vivos
cometem o erro de fazer distinções demasiado rígidas.
Os Anjos, diz-se, não sabem muitas vezes se se movem
por entre os vivos ou por entre os mortos. A eterna corrente
consigo arrasta incessantemente todas as idades,
através destes dois domínios, e o seu som a ambos se impõe.
Afinal, de nós já não precisam aqueles que tão cedo nos foram arrebatados,
suavemente se vai perdendo o gosto pelo que é terreno, tal como ao crescer
nos desprendemos da doçura do peito materno.
Mas nós, que de tão grandes mistérios necessitamos, nós para quem o luto é tão frequentemente a fonte de feliz amadurecimento -: poderíamos sem eles existir?
Ou será vã a lenda de que foi outrora, ao prantear-se Lino,
que a primeira música ousou penetrar na aridez do espanto?
Então, apenas quando esse jovem, quase um deus, de súbito
no espaço do terror para sempre se ocultava, o vazio
atingiu por fim a vibração que agora nos arrebata, nos consola, nos ajuda.

Rainer Maria Rilke
in As Elegias de Duíno

cesariny sobre o valor do silêncio e da beleza da nudez

discurso ao príncipe de epaminondas, mancebo de grande futuro

Despe-te de verdades
das grandes primeiro que das pequenas
das tuas antes que de quaisquer outras
abre uma cova e enterra-as
a teu lado
primeiro as que te impuseram eras ainda imbele
e não possuías mácula senão a de um nome estranho
depois as que crescendo penosamente vestiste
a verdade do pão a verdade das lágrimas
pois não és a flor nem luto nem acalanto nem estrêla
depois as que ganhaste com o teu sémen
onde a manhã ergue um espêlho vazio
e uma criança chora entre nuvens e abismos
depois as que hão-de pôr em cima do teu retrato
quando lhes forneceres a grande recordação
que todos esperam tanto porque a esperam de ti
Nada depois, só tu e o teu silêncio
e veias de coral, rasgando-os os pulsos
Então, meu senhor, poderemos passar
pela planície nua
o teu corpo com nuvens pelos ombros
as minhas mãos cheias de barbas brancas
Aí não haverá demora nem abrigo nem chegada
mas um quadrado de fogo sobre as nossas cabeças
e uma estrada de pedra até ao fim das luzes
e um silêncio de morte à nossa passagem

Mário Cesariny

manual de prestidigitação

leiam e multipliquem-se