quarta-feira, 3 de setembro de 2014

- Não pode ser assim tão grave, não ler!
- É um escritor que mo diz? Vou-lhe explicar, meu caro: quando os homens desenvolvem estilos de sobrevivência na miséria crónica, sobrevém-lhes a necessidade de ajustarem a visão de si próprios à visão de um mundo sem perspectivas. É assim do seu interesse diminuir, o possível, o risco de ter uma alma. Em África fala-se imenso do combate à pobreza, à Sida, dos direitos humanos, mas isto não passa do modo como se camufla o desapego essencial: o homem putrefaz o homem. O único antídoto estava no símbolo, nessa metade de nós que só nos chega do exterior e que o intérprete consagra. Perdido o leitor perde-se a chave para o símbolo: a hospitalidade, a ideia grata de que só pelo outro, pela visita do mundo, existimos. Fica o mundo em liquidação.
[...]
- Bom, era uma pergunta de retórica. Mas começar por África, tão flagelada?
- Quem lhe disse que começou em África? Embora África esteja mais carenciada de ser restituída aos símbolos, porque aqui se delapida a vida deliberadamente. E há mais de três anos que ninguém lê Monsieur Teste, abaixo do equador...


António Cabrita
A Maldição de Ondina
Abysmo

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