sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

a condição da edição independente [entre aspas], hoje

Zona Autónoma Temporária
Hakim Bey
a amizade e o carinho podem trazer consigo um perigoso e falível discurso crítico. desde que comecei a minha investigação sobre pequenas editoras houve muita coisa que mudou, conheci muitas pessoas, mudei o meu norte, todos os meus pontos de vista, os quotidianos. acabei por de alguma forma começar a viver dentro dos meus editores e livreiros mais do que a trabalhar sobre eles. a cabeça multiplica-se com pensamentos e questões sobre estes temas, sendo as questões o ponto fundamental - o interminável questionamento, o pôr em causa o que preferíamos que fosse de outra forma mas que na verdade não é.

publicar em pequenas editoras terá sempre dois lados de uma só questão - a independência perante as rigorosas leis do mercado cada vez mais castradoras. por um lado isto permite-nos delinear em absoluto a nossa linha editorial, escolher os autores e os textos. por outro lado retira-nos alguns anti-corpos contra a contaminação dos grupos, amigos e inter-influências contra as quais estamos desarmados. o mercado como qualquer outra forma de autoridade ajuda-nos a delinear de forma externa a nós um esquema de actuação. a liberdade editorial permite que não tenhamos de viver sob esse jugo mas que então sejamos absolutamente responsáveis pelos leitores que formamos, pelos autores que escolhemos editar. esta liberdade é fascinante por estar a delinear um futuro absolutamente incerto do que será o panorama editorial dos primeiros vinte anos deste século mas à liberdade vem sempre associada uma grande dose de responsabilidade, já o diziam os existencialistas que tanto admiravam estes autónomos movimentos culturais. e o que tenho descoberto e aprendido com os piores e mais negativos discursos relativos a esta gente toda é que é fácil cair numa lógica que envolve à volta do livro tudo o que está para além do texto, perdendo assim o que realmente importa. a um livro ligamos um lançamento, as críticas dos amigos, fotografias nas redes sociais, problemas de distribuição, questões financeiras, encontros e outros eventos. e o carácter sagrado do texto e da sua criação perde-se no meio de um mar contaminado de outros focos de luz.

não quero com este texto mostrar uma postura negativa, não foi isso que ganhei com estes primeiros seis meses de investigação. o que percebi foi que é também dos leitores a responsabilidade que vem da liberdade do meio editorial. que os leitores estão mais próximos destes livros e destes autores, que os conhecem de perto, podem ler os textos com uma luz diferente e mais esclarecida. e que um leitor atento pode assim perceber as excepções ao que acabei a dizer - aliás se interessa a alguém perceber estas questões é mesmo ao leitor porque é o texto que lhe chega que pode vir contaminado. e percebemos rapidamente que quando descobrimos um editor que se foca no texto e no autor e posteriormente no leitor, desfocando-se de tudo o que está para além disso, sabemos que estamos perante um editor raro. e perante um autor raro e tornamo-nos assim leitores profícuos e maiores. e tudo isto porque acredito fortemente que um texto que recebe estas contaminações não nos chega nas condições que poderia chegar se não as tivesse - ainda que seja questionável esta afirmação.

o tão falado amor aos livros tem de ser substituído pelo amor ao texto. e é necessário recuperar nessa relação de amor a intimidade nossa, leitores, com o texto. e não estou com isto a abolir as leituras públicas, os lançamentos e as festas, estou só a dizer que não é aí que está o foco. e felizmente para muitos dos meus editores (e muitos dos que estão agora a nascer) aquilo que estou a dizer é absolutamente linear. e é com esses livros que ando na mochila.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

[do fim das formas literárias]

Em todos esses arautos da modernidade se assiste ao nascimento do poema sem eu e sem arroubos expressivos, do "drama-poesia" no sentido que a expressão ganha em alguém como Maria Gabriela Llansol, que, rejeitando a poesia como forma de expressão, assimila totalmente ao seu texto de prosa esta postura do sujeito posto à distância, numa escrita muitas vezes referida como "poética", mas que recusa os excessos da emoção ("sem perda de sensibilidade") e da projecção (auto)biográfica, através do trabalho, antimimético, de (trans)figuração na linguagem. E aqui, como em tanto poema autenticamente moderno, figurar, criar figura, é objectivar a expressão. Para Llansol, é esse "o poema que vai adiante": o de uma linguagem com um alto grau de originalidade, numa busca incessante da energia do "sexo do texto", incomparavelmente criativa e carregada de interrogações, mas também da densidade do novo que forma uma trama cerradíssima, numa escrita sempre fragmentária, completa e sempre sem resto.

Geografia Imaterial
João Barrento
Documenta, 2014

[do acontecimento na poesia]

O poema é quase sempre mais uma construção (e, sendo assim, o meu acesso a ele não é imediato nem espontâneo, tenho de aprender a desconstruí-lo), construção essa que permite, a quem escreve, agir com as palavras, dar a ver e ouvir o mundo de uma forma que a civilização e a razão sublimam ou recalcam; e a quem lê, ter acesso, talvez mais profundo e luminoso, ao que está a acontecer.

João Barrento
Geografia Imaterial
Documenta, 2014

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

no sorriso louco das mães


No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e orgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo.
São silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos. Porque
os filhos são como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudez de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado
por dentro do amor.

Herberto Helder

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Bachelard e a poesia

De fora a poesia parece desordenada. Não há escolas, não há poetas arrastando atrás de si poetas mais jovens. Os jovens poetas querem a independência. Por conseguinte, estamos num tempo de poesia verdadeira, de poesia que não imita, é um facto. Não salta à vista? Não tem importância nenhuma. É preciso procurar as pedras preciosas; escondidas ainda são mais preciosas. Gostaria de lhe transmitir a minha impressão de que estamos num tempo de poesia exuberante. Não se trata de grandes tiragens. Aliás tenho a impressão de que as grandes tiragens seriam perigosas porque correriam o risco de passar por uma imitação da poesia do século passado.
As pessoas têm medo dos poetas e têm razão. Um poeta é alguém que perturba uma porção de coisas, é muito inquietante a poesia.
[...]
Depois [de Lautréamont] houve todos os outros, todos aqueles [poetas] que me mandaram os seus livros. Os meus amigos poetas. Fazem a felicidade da minha vida. 


Gaston Bachelard
entrevistado em Os escritores e a literatura, Madeleine Chapsal

terça-feira, 18 de novembro de 2014

o Parto de Manuel Cintra

apresentei ontem no Povo o novo livro do Manuel Cintra, Parto, editado na editora do próprio, Palavras por Dentro.

Vou a muitos lançamentos mas este foi especial, não só pelo convite que o Manuel me fez mas por perceber que ele juntou os amigos que viviam dentro da poesia e da obra dele para fazerem parte deste dia. foi por isso um enorme privilégio este convite.

ouvi algumas vezes o Manuel falar deste livro. o que foi sempre claro em todas as conversas é que era necessário que este livro saísse agora, mais de 30 anos depois de ter começado a ser escrito. foi um parto lento e certeiro. é o livro que faz sentido nesta altura, no percurso que o Manel fez, na obra que foi escrevendo que se confunde tanto com a vida que viveu.

o livro apresenta-nos Pedro, que ao longo dos anos se transforma em Anjo ao mesmo tempo que parece enlouquecer. a personagem de Pedro tem a mesma evolução que o próprio Manuel vai tendo na sua escrita ao longo deste últimos 30 e tantos anos - um caminho que indica loucura, desumanização, fim da lógica narrativa. Pedro e o Manuel querem voar. e este livro é o grande e belo voo do Manuel.

chama-se a este livro o primeiro romance de Manuel Cintra. mas nem este é só um romance nem o que foi escrito até agora foi só poesia. esta é a obra do Manuel, do poeta errante da cidade de Lisboa. este é o livro que se segue aos outros livros. assim como a vida do poeta não se enquadra em categorias também a sua obra não se pode fechar em nenhuma caixa.

mas é importante que se preparem. este é um livro violento, escatológico. é-o sobretudo porque faz com que questionemos e nos deparemos com alguns dos nossos piores tabus e fantasmas. se não fosse por mais nada este livro já valia por isso. mas vale por uma enormidade de outras razões. e merece cada um dos leitores que tiver.

há uns meses o José Anjos escreveu sobre o poeta o texto que transcrevo em baixo. sem ter lido o Parto o Zé soube explicar melhor do que eu conseguiria o que é o parto, não só neste livro como em toda a obra e vida do Manuel Cintra.

"Na semana passada tive a honra de abrir o lançamento do livro do Manuel Cintra dizendo um poema dele. Um de que gosto particularmente. Há vários, aliás. Mas ficou algo por dizer acerca do Manuel. Sem caganças. O Manuel Cintra é um dos meus poetas preferidos de sempre. Mas é acima de tudo - e de muitos também e de lado e por vezes por todo o lado - um poeta do presente, o poeta do agora em todos os sentidos e com todos os sentidos que cabem no agora. E os que não cabem também, que o Manuel Cintra é muito maior do que o seu próprio traço, talvez até maior do que a liberdade de quem é mãe e filha ao mesmo tempo. E os poemas que caem no berço do seu regaço de escaravelho em papel de placenta são dores, dores furiosas desse parto repetido, a cada momento, agora e agora outra vez, da liberdade. Das mais belas e bem sofridas dores de parto, digo eu, que não sou parteira. A prova que o ser humano existe e respira nesta cidade e nasceu outra vez e neste preciso momento. E Agora. Um abraço pintado Manuel."
José Anjos

as Edições Guilhotina quando ainda não o eram


 Foi apenas uma ocasião feliz que me tenha encontrado numa noite quente de Verão com as que viriam a ser as editoras da Guilhotina: Diana Pimentel, Maria Quintans e Cláudia Lucas Chéu. Todas têm caminhos editoriais variados quer enquanto editoras ou enquanto autoras para além de viverem as três dentro da realidade editorial pelo percurso pessoal que foram formando. Conhecem o meio, as formas e os livros que querem defender. Sabem que caminho fazer, têm convicção, bons princípios e ideias claras. E assim depois de percursos diversos chegaram as três juntas à Guilhotina. Uma editora que promete muitas surpresas e um caminho único, do qual falarei (muito, acredito) nos próximos tempos.
Quando conversamos à volta de um copo de vinho branco o discurso das editoras flutua entre o positivo e o negativo, de forma apesar disso equilibrada. Admitem que os editores já não trazem prestígio aos autores como há uns anos atrás. Procura-se uma marca que prestigie. E isso não acontece por acaso – não se procura o editor porque essa figura foi desaparecendo. Diana Pimentel acredita que o que distingue esses editores dos outros é que o interesse ao receber uma proposta de livro para editar se centra apenas no texto. Apesar de esta formulação parecer clara, a verdade é que não o é. A construção de um escritor passa hoje por um gigante leque de condicionantes contextuais, os leitores têm exigências diferentes na procura do livro para ler, muitos são clientes e não leitores. Muitas vezes os editores regem-se por estas fórmulas tentando assim obter sucessos nas vendas. As figuras que medeiam a leitura já não são as mesmas, já não se procura um texto como se procurava há uns anos atrás quando os escritores não estavam envoltos numa teia de contextos tão complexa como esta - notoriedade, figura pública, prémios, polémicas, relações externas ao livro, entre outros.
É assim fundamental focarmo-nos na realidade do leitor. Podemos pensar esta questão das editoras pequenas ou editoras independentes de vários pontos de vista mas o do leitor é pouco reflectido. As editoras mais pequenas, ao serem dependentes do texto para o fazer vender – não podendo recorrer a estratégias comerciais para as quais não têm fundo de maneio e para as quais, no limite, nem têm interesse (uma vez que os objectivos passam apenas por tornar os livros sustentáveis por si) – apresentam-nos o texto de forma inócua, deixando-nos livremente a escolha do mesmo, que vive assim, ainda de forma mais presente, a força do próprio texto. Quem escolhe o que vai ler é o leitor e não o mercado, os livros são disponibilizados e não impostos por uma lógica comercial. Assim a Guilhotina promete uma escolha criteriosa de textos aos quais teremos acesso de forma activa enquanto leitores e, (posso apenas acreditar porque ainda não os li) de forma absolutamente apaixonada. 

A editora Guilhotina será apresentada esta sexta-feira, 21 de Novembro, no Primeiro Andar em Lisboa e serão lançados os três primeiros livros:
aerogramas, de Diana Pimentel, com apresentação de Fernanda Freitas e leituras de Raquel Marinho.
A Mala, de Valério Romão, com apresentação de Frederico Pedreira e leituras de Paula Lobo Antunes.
Trespasse, Cláudia Lucas Chéu, com apresentação de Miguel Real e leituras de Albano Jerónimo. 

 

sábado, 15 de novembro de 2014

o Imediatismo de Hakim Bey

No seu livro Zona Autónoma Temporária, Hakim Bey defende que toda a experiência é mediada por tudo o que está entre ela e nós. A arte é a manifestação dessa mesma experiência.
Há artes mais mediadas que outras - ouvir um CD, ou ver televisão é mais mediada do que ver um ballet ao vivo por exemplo.
A forma como o que Hakim Bey chama de "Capitalismo Moderno" conduz a arte leva a formas extremas de mediação. Este facto deve-se sobretudo a um fosso maior que se cria entre a produção e o consumo da arte. O consumo da arte é levado a sítios tão extremos que vamos mesmo perdendo a noção do que originalmente nos entusiasma na arte: a experiência imediata, a honestidade e franqueza, o que vem da nossa natureza animal.
Enquanto artistas devemos então procurar esse imediatismo, devendo procurá-lo para nós e para os outros sem dar a entender que o fazemos para que essa experiência artística seja assim o menos mediada possível. A arte tem de entrar na vida quotidiana de forma discreta e absoluta, não em forma de arte, algo que não pareça nunca passível de acção comercial. Desta forma a arte está dependente do contexto e não de um programa estético que valha por si. Se a arte está no quotidiano então não vale isoladamente.
Desta forma a figura do artista é também eliminada. todos são participantes e todos são actores da obra de arte em medidas iguais.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

regressar a uma casa que não existe

Cláudia Clemente já tinha escrito dois livros de contos e um livro de teatro. Este é o primeiro romance. no entanto é um romance fragmentário que pode ter ligações com esse universo do conto. numa série de fragmentos articulados de forma absolutamente orgânica a autora conta-nos várias histórias que aparentemente são distantes mas que a determinado momento do livro se unem com uma naturalidade que escapa ao próprio leitor.
este livro fez-me pensar na questão das expectativas. pegamos num livro que se chama Casa Azul e lemos que a autora viveu mesmo nessa casa quando crescia. e de repente preparamo-nos para uma leitura já tão contextualizada e apercebemo-nos logo que a Casa não existe e apenas nos sobra o contexto de um livro que ainda não lemos. a história deste romance não é sobre a Casa. é sobre a forma como se sobrevive às ruínas de uma casa. ruínas que são da casa e dos seus habitantes. é um livro que parte da ruína para a construção e que encontra assim de forma instintiva uma mensagem de alento e positividade, numa história que dificilmente se adivinhava com essa forma, numa mensagem de plena liberdade, mas que apesar disso é sempre claro que se trata de uma casa que não existe. o livro mostra como é possível reconstruir ruínas sem que o que antes existia volte a existir. uma reconstrução de sentidos e não de paredes.
desta forma podemos dizer que a casa em ruínas funciona como uma explosão de estilhaços que se espalham em diversas direcções mas que regressam depois a casa, cada um com o seu ritmo e a sua forma de o fazer, sem saberem que os outros estilhaços estão também nessa altura a fazer o mesmo regresso a um sítio onde não se lembram de um dia ter vivido juntos.
é um livro duro, real, doce e verdadeiro. um belo primeiro romance.


A Casa Azul
Cláudia Clemente
Editora Planeta

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

abismos

procuramos nos livros sempre algo extraordinário. conforme vamos encontrando, mais vamos procurando. se conseguirmos absorver o que nos é dado a ler e o que o extraordinário transmite então aí corremos o risco de nos tornarmos mais exigentes. conseguimos dizer que um livro é bom, mas a nossa fasquia sobe até sítios difíceis de alcançar.


neste livro de meckert vou saltar directamente para o último conto do livro, o Abismo. os outros são bons contos, mas, lá está, lêem-se com relativa tranquilidade. este, pelo contrário, leva-nos a abismos perigosos. com alguma investigação podemos ficar a saber que pelo menos o contexto em que se passa a história é real, mas ainda assim muda pouco no tipo de abismo em que entramos (já não digo caímos por ser de uma absoluta redundância, por todas as razões, não apenas as gramaticais). o sítio que meckert encontra é um sítio nosso, comum, que nos pode ou não ter sido desvendado. o temor que se abre como portas metálicas é um temor comum à humanidade, ao conjunto, ao limite desta nossa condição que se mantém tão desconhecida. uma procura intensa de uma visibilidade que só a nossa possibilidade de morte torna possível, por mais irónico que isso seja. é tão humano querermos ser vistos como tornar os outros invisíveis. só vemos o que é extraordinário, que rompe barreiras e convenções, mas dificilmente nos fascinamos com o comum. na própria literatura é raro quem consegue de forma eficaz retratar o normal. quem o faz é só por esse feito um escritor fantástico. jean meckert era um escritor extraordinário que soube elevar a sua absoluta normalidade e invisibilidade a um medo de todos nós, humano e orgânico, um medo que toca por um lado a solidão, pelo outro a certeza da nossa finitude.

A vida de Jean Meckert esteve longe de ser fácil. Figura rebelde das letras francesas, Meckert nasceu em Paris a 24 de Novembro de 1910, tendo sido separado da família em 1920 e enviado para o asilo Lambrechts, uma instituição protestante situada em Courbevoie. Desses quatro anos de orfanato ganhou uma repulsa pelo ensino religioso, guardando para sempre os sentimentos de abandono e humilhação. Na escola revelou-se um bom aluno, obtendo o diploma do ensino primário e trabalhando como aprendiz numa empresa de construção de motores eléctricos. Em 1927, já como empregado de escritório, ingressa no Crédit Lyonnais, lugar onde a sua mãe trabalhava como empregada de limpeza. Apanhado pela crise em 1929, Meckert perde o emprego e vai subsistindo através de pequenos trabalhos. Para escapar a esta vida miserável alista-se no exército em 1930, por um período de dezoito meses, sendo punido com várias penas de prisão por ausências injustificadas, conseguindo ainda assim ser promovido ao posto de cabo pelo comandante da 5ª Companhia de Engenharia. Ao regressar à vida civil em 1932, vê-se novamente mergulhado na pobreza. Estávamos na grande época do desemprego, onde era necessário fazer de tudo para sobreviver, e Meckert deitou a mão a tudo o que conseguiu, como o trabalho de vendedor ambulante ao portão da fábrica da Renault. O seu quarto de hotel, em Belleville, torna-se a sua «última trincheira», o refúgio onde escreverá narrativas inspiradas na sua própria existência, designadamente os três contos publicados em “Abismo e outros Contos” (Antígona, 2013): “Um Crime”, “O Bom Samaritano” e “Abismo”.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

a Flanzine do Azul

foto de Mar Babo

 era de noite, no Porto, uma noite de chuva. andava por ali com o João Pedro Azul, editor da Flanzine e da Flan de Tal, uma editora que se lança agora no seu primeiro livro Poemanifesto. a Flanzine, essa, já vai no número #5, a caminho do #6 que sai em Dezembro, com o tema FOME.

entrámos num bar, Duas de Letra, um dos tantos onde a Flanzine foi apresentada no Porto, pedimos uma bebida e fizemos fortes e prédios com as peças de Lego que havia em cima da mesa. e se fizéssemos agora a entrevista? sugere ele. eu pus a gravar aquela que seria até agora a mais descontraída de todas as entrevistas, afinal estávamos dois amigos num bar e havia Legos e Martini. talvez também por isso, pela intimidade e descontracção, foi fácil começar ali a desenhar o perfil deste editor que, ao assumir-se como editor de um fanzine, prefere não adoptar as características de um editor de livros. a Flan de Tal fica para uma próxima conversa, é uma editora que está agora a fazer-se crescer e a formar uma linha editorial. em construção.

ao fazermos uma revista ou um fanzine há características que lhe são próprias. o editor convida escritores, autores, ilustradores sabendo que ali lhes está a oferecer um espaço. o trabalho do editor fica limitado (no que a palavra "limitado" tem de bom) pela autonomia do próprio autor que, ao ser convidado, tem uma liberdade de acção que está também relacionada com o facto de aquele texto vir acompanhado de outros que não são seus. assim, cria-se na Flanzine um espaço de risco, autonomia e experimentação, que torna o fanzine não só um espaço de surpresa como também um espaço de encontro de escritas que não se encontram em outros sítios.

todos os números da Flanzine têm um tema diferente. até agora mala, medo, boca, carrossel, cama e fome, no número de Dezembro. no entanto o Azul afirma que não há uma linha literária no fanzine, apenas esse tema. enquanto juntos questionávamos essa ideia, tantas vezes obscura, do que é uma linha literária apercebemo-nos de que há duas formas de marcar uma linha numa publicação: por um lado ter alguém à frente que convida escritores ou poetas que identifique com a linha que pretende, por outro alguém que selecciona textos entre vários, tentando que estes se liguem ao mesmo imaginário, entre eles. na Flanzine escolhem-se autores por empatia, por relações de amizade e proximidade, por se acreditar no potencial literário e artístico dos convidados. o Azul acredita que a forma de retribuir o trabalho e dedicação dos seus autores é através de um enamoramento, uma relação de proximidade que se vê em todo o processo do fanzine. é esse o funcionamento deste editor tão particular, que cria linhas invisíveis entre todas as tantas pessoas que colaboram com a Flanzine, criando relações que se baseiam na confiança, gratidão e admiração. talvez por isso o Azul tenha sido o primeiro a dizer que não há editores independentes e sim editores interdependentes. e tem razão.


podem assinar / comprar a Flanzine através do email: zine.flanzine@gmail.com ou encontrá-la em alguns dos mais belos pontos de venda independente do país. 

página fb da Flanzine

página fb da Flan de Tal


segunda-feira, 13 de outubro de 2014

o belo "efeito kuleshov"

"Lev Kuleshov, cineasta Russo (1899-1970), mostrou a importância da edição (montagem) enquanto ferramenta essencial no cinema. Utilizando esta técnica percebeu que o significado de uma sequência de planos pode depender apenas da relação subjetiva que cada espectador estabelece entre imagens ou planos que, isoladamente, não possuem qualquer sentido. Uma das suas experiências cinematográficas consistiu em intercalar o plano onde surgia um actor inexpressivo com os planos de um prato de sopa, de uma criança num caixão e de uma mulher semidespida. Como resultado, apesar do plano do actor ser sempre o mesmo, a audiência encontrou no rosto do actor a expressão de fome, de piedade e de desejo."

é assim a contracapa do livro da dois dias edições & Amor-Livr'o, um livro objecto (gosto tanto de encontrar livros objecto, chamá-los assim, e nem saber bem a que me refiro) de leitura compulsiva. com imagens que são acompanhadas por dois ou três textos, um que realmente acompanhava a imagem e outros imaginados, o leitor faz parte integrante do livro ao experimentar o efeito Kuleshov. como disse João Botelho este é um livro em que o leitor trabalha e participa. é um livro que ultrapassa caixas e quadrados e coloca-se num novo nível de transição, tão necessário como poderoso. ficam algumas imagens do lançamento. 














quarta-feira, 8 de outubro de 2014

a abysmo do cotrim


 quando trabalho com um autor quero sempre trabalhar com ele.
um editor ideal é uma série de "eus"
João Paulo Cotrim

fui à abysmo encontrar o João Paulo Cotrim num fim de tarde de Verão. foi uma das primeiras entrevistas. conhecia o trabalho do João Paulo mas não conhecia a pessoa. foi no desenrolar da nossa conversa que percebi o potencial do editor-pessoa. uma das resoluções que tinha definido quando iniciei este projecto de investigação foi que ele se iria desenrolando consoante aquilo que fosse acontecendo durante as entrevistas. e ao conhecer o João Paulo e o seu trabalho na abysmo percebi rapidamente que tínhamos aqui um caso de um profundo equilíbrio entre crescimento e fidelidade a princípios editoriais dos quais não se abdica e que, a abdicar, tirariam o sentido da existência da editora como ela fora pensada.

ainda não cheguei à definição final de denominação destas editoras, ainda me fico pelo "editoras independentes" ou "pequenas editoras". o ter escolhido a abysmo como um dos primeiros casos de estudo não foi visto por todos de forma pacífica. será a abysmo uma pequena editora ou uma editora independente? serão estes conceitos inclusivos? a abysmo mostra que não. que uma editora independente não é obrigatoriamente uma pequena editora (e muito mais tinta teria de correr sobre esta questão do "tamanho". avante.).

João Paulo Cotrim criou a abysmo em Setembro de 2011 por uma circunstância simples e comum ao início de muitas editoras, a vontade de publicar um livro específico, o Branco das Sombras Chinesas neste caso, por sugestão de António Cabrita, autor da abysmo e amigo. depois dessa sugestão percebeu que aquilo que gostava era de fazer livros e que por isso o melhor que podia fazer era fazê-lo profissionalmente mas para ele próprio e não para terceiros. define nessa altura esses princípios editoriais (que são mais do que linhas ou posições) que passam por um compromisso total com o texto. esse compromisso dita as regras editoriais de escolha de originais. o facto de terem surgido no início de uma crise económica muito violenta para qualquer negócio colocou-os num sítio onde muitas editoras se colocaram nestes últimos três anos - um sítio de liberdade onde se vão testando barreiras e limites, onde se arrisca a publicação de novos autores. durante a conversa fomos revelando algumas das características mais determinantes da abysmo. o texto é escolhido por um lado pela sensação do editor que lhe transmite a qualidade literária do mesmo e depois tendo como base a confiança em alguns amigos que lhe sugerem autores. o autor que entra para abysmo torna-se família e acaba por participar nos processos da editora quer nos seus livros quer no conjunto editorial. os autores tornam-se leitores para a editora e amigos da casa, construindo assim a unidade e coerência visível em todo o catálogo.

uma característica que distingue a abysmo das outras editoras é o facto de cedo ter percebido que se o livro não se promover por si não vai ter vendas. e aqui a promoção é entendida de um ponto de vista diferente da promoção que vemos em grandes grupos editoriais que têm por trás uma gigante máquina de marketing e fundos que a alimentam. neste caso o João Paulo percebeu que o livro tem qualidade por si e que o que a editora tem obrigatoriedade de fazer é mantê-lo vivo usando dessa mesma qualidade. e isso pode ser feito através de redes sociais, dinâmicas em que os autores se apresentem em público, exposições ou outros eventos associados ao livro impresso (a abysmo é hoje também uma galeria de exposições).

podemos dizer que o João Paulo não descobriu segredos bem guardados mas observou as diversas formas de se fazer edição e juntou ingredientes de sucesso - o tipo de sucesso que o interessava, o que os permite crescer sem comprometer em nada a qualidade literária. o sucesso advém apenas dessa mesma qualidade. o João Paulo juntou assim novos autores em quem acreditava fortemente, decidiu que não queria criar cânones e sim escritores, juntou com mestria escritores com ilustradores, criou uma família onde transparece amizade e cumplicidade. percebeu também que ao arriscar em novos autores está não só a criar leitores no presente como também leitores do futuro.




site da editora abysmo


facebook da editora abysmo

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

sobre as razões da edição



Muitas vezes me disseste que esse livro me transformou à medida que o ia escrevendo. "Depois de o teres concluído, já não eras o mesmo". Penso que te enganavas. Não foi o tê-lo escrito que me permitiu mudar; foi ter produzido um texto publicável e vê-lo publicado. A publicação mudou a minha situação. Conferiu-me um lugar no mundo, conferiu realidade ao que eu pensava, uma realidade que excedia as minhas intenções, que me obrigava a redefinir-me e a ultrapassar-me continuamente, para não ficar prisioneiro nem da imagem que os outros tinham de mim nem de um produto, pela sua realidade objectiva, tornado outra coisa que não eu. Magia da literatura: fazia-me aceder à existência tal qual eu me tinha descrito, escrito na minha recusa de existir. Esse livro era o produto da minha recusa, era essa mesma recusa, e, através da sua publicação, impedia-me de prosseguir nessa recusa. Precisamente o que eu tinha esperado e que só a publicação me poderia dar: ser obrigado a comprometer-me para além do que eu podia pela minha vontade solitária, e a colocar problemas, a prosseguir fins que eu não definira sozinho.

Carta a D.
História de um amor
André Gorz
Pianola

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Flanzine #5 CAMA

anda por aí uma fanzine com forma de revista. é dado adquirido que as formas e categorias têm de ser questionadas, mais até do que revistas. e a Flanzine será aquilo que quiser ser sem dar cavaco a ninguém.

o número #5 é sobre a CAMA. será porventura fácil imaginar para onde os autores fazem descambar o tema? talvez não.
os autores não se conhecem e é-lhes pedido um texto sobre a CAMA. o fio condutor existe e é claro mas é maior do que a Flanzine, está não só nela como nos autores, nestes e nos outros que não escrevem aqui. um tom narrativo, uma forma clara e de grande mestria com que se fala do quotidiano, com linguagem quotidiana, mas com excelência literária. em bom, portanto. há excepções, claro, mas não vou referir excepções cada vez que se fala de um fio condutor. mantenhamos assim como entendido à partida.

a CAMA assume aqui um ciclo perfeito e fechado - por um lado o nascimento e um qualquer início. depois um erotismo latente e crescente sem idade ou hora do dia. depois a morte, claro, que não há nascimento sem ideia de morte. erotismo talvez, mas adiante.

a CAMA é assim tema fechado em si, auto significativo e em estado bruto: "Ir para a cama é tão satisfatório que não exige descrição, basta dizer: fui com el@ para a cama. Curtimos na casa de banho, comemos-nos no adro da igreja ou fizemo-nos na disco exige sempre descrição detalhada para percebermos até que ponto a coisa foi séria." (Sermente). A CAMA é espaço horizontal, erótico, sensual, como o poema: "A cama talvez seja o melhor sítio / para o poema. / O poema: / ser horizontal, húmido, bom de foder." (Inês Fonseca Santos). A CAMA é espaço de segurança porque a haver monstros estão por baixo, nunca por cima. na verdade cada pessoa traz consigo uma cama por cada noite dormida, tantas formas pode ter essa cama como os textos que se podem escrever sobre ela. em liberdade que assume a Flanzine. em total liberdade literária, textual e até a maior liberdade de todas, a dos textos que não têm nome.

a Flanzine é apresentada esta sexta, 19 de Setembro, n'o Bom, o Mau e o Vilão, em Lisboa, a partir das 19h30.


do senhor teste # dia 3


segunda-feira, 15 de setembro de 2014

do senhor teste # dia 2



a SNOB, a livraria que pertence à minha teia


abriu uma livraria em Guimarães, a Snob, uma livraria que antes de existir já existia pela mão do Duarte, da Emília e do Eduardo, noutros projectos e nas ideias que estão por trás da Snob. esta livraria entra na linha do que tenho andado a ver e ouvir, uma livraria que não é só uma livraria, é uma ideia, assim como tenho encontrado editoras que não são só editoras, são editoras e são ideias. autores que são ideias. e a ideia é que podemos levar avante projectos que necessitam de uma vertente comercial sem abdicar de qualquer vértice de qualidade. já o tinha dito relativamente ao sr teste e a snob é um senhor teste nortenho e não o é por acaso, é-o por se deixar influenciar, por ouvir, aprender e, lá está, ter a mesma ideia.
fui ao Porto este fim-de-semana. conheci o Duarte na Feira do Livro do Porto, na banca da livraria, onde me agrafei uma tarde inteira (o Duarte além de talentoso livreiro&etc é de uma simpatia avassaladora). reconheci os livros todos que estavam expostos e senti que o Duarte estava na teia. é como se todos os da teia partilhássemos um segredo que começa a não ser segredo nem o quer ser. é o segredo do Duarte, do Ricardo, d’a tua mãe* da Marta, da douda do Nuno, da averno da Inês, da texto sentido, da eclusa, da pianola, de tantos outros. um segredo partilhado e mal guardado porque se começa a espalhar em forma de boato. há aí gente boa a escrever, outros a editar e outros a vender. uma teia que só é independente porque se recusa a comprometer a qualidade literária, a pertinência do sentido e a musicalidade dos livros.
foi bom ir ao Porto e ver de perto a Snob. Guimarães será a próxima paragem. aqui em baixo deixo-vos as paragens da Snob e as imagens da banca na Feira do Livro do Porto onde vão ver, claras e fortes, as linhas da teia.

facebook Snob
site Snob







quarta-feira, 10 de setembro de 2014

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

sobre as editoras independentes

o projecto avança de forma tempestiva, com entrevistas, conversas e planos. em cada entrevista surgem novas ideias e pontos de vista o que me faz prever que se não puser travão a isto posso estar trinta anos a desenvolver esta ideia o que não era mau de todo.
seja como for optei por não publicar nenhuma entrevista (ainda que estejam todas transcritas) para que os entrevistados estejam completamente à vontade com o que dizem e com a forma com que o dizem. vou antes escrever um artigo sobre cada entrevista. o primeiro já saiu os outros vêm a caminho. obrigada a todos pelo apoio, tardes de conversa, ideias, mensagens, e-mails, viagens e livro.


continuem a acompanhar o projecto na página de Facebook Editoras e autores in-dependentes de quê?



quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Valério Romão, um dos lados do triângulo

foi num fim de tarde que encontrei o Valério Romão, numa esplanada do nosso bairro. como não era uma pessoa desconhecida (em nenhuma frente) nem uma entrevista nada formal, o gravador começa a gravar a meio de uma frase e acaba por ser esquecido. falo demais, como costuma acontecer quando é um Valério que tenho à minha frente, e duas imperiais. não devia. anotar a falha.

escolhemos ser escritores quando queremos escrever. depois percebemos que queremos ser lidos e que publicar é uma urgência e uma necessidade orgânica e natural. que se encaixa na própria função de se ser escritor. o Valério é um escritor com uma consciência interna da sua própria função. opta por não se ver de fora, de forma exterior, a partir dos olhos dos outros. vive dentro do triângulo escritor - editor - leitor e preserva essa intimidade como a única que interessa. vê a sua independência não como uma bandeira ou manifesto mas como a única forma possível, depende apenas desse triângulo. para isso teve algumas “coincidências generosas” como lhes chama. João Paulo Cotrim, da Abysmo, recebeu das mãos de António Cabrita, amigo comum, a notícia do novo escritor. da coincidência generosa parte uma relação que encaixa não só no perfil do escritor como no perfil do editor. de uma relação profissional nasce uma confiança que equilibra bem e de forma funcional uma óbvia fórmula de sucesso.

não é por acaso que o triângulo funciona. um livro vive de um autor que o escreve para um leitor que o lê e passa por um editor que torna esta relação possível, não apenas como mensageiro mas parte activa do processo. se as três partes se respeitarem e entenderem mutuamente o resultado é positivo.

Valério Romão é hoje um escritor conhecido do público. não sabe bem em que altura se deu o passo que o levou a ser conhecido desta forma. o Valério não acredita em parte da sua popularidade. mantém-se escritor com as mesmas rotinas que tinha antes deste passo. admite no entanto que a Granta e a opção de Carlos Vaz Marques em arriscar a publicação de um escritor com uma obra tão curta e ainda tão desconhecida tiveram um papel decisivo. é público que Carlos Vaz Marques sabe o que faz. neste caso houve mais do que um casamento perfeito: o Carlos que dá o pontapé para que mais gente o leia, o João Paulo que publica os escritores novos em quem acredita intrinsecamente e o Valério que escreve bem, com convicção, sob o olhar atento de pessoas em quem confia como o António Cabrita.

é realmente difícil falar em angústia da influência no caso desta geração. faz parte da forma como eles se criaram enquanto escritores - acreditarem que a sua obra tem de ser única e original, assumindo, no caso do Valério, os ecos imensos de muitas leituras. as editoras pequenas que surgiram neste último ano trouxeram ao mercado editorial dezenas de novos escritores, dando-lhes importância e peso de forma desigual, é verdade, mas sempre confiando nessa mesma capacidade de serem únicos, autênticos e com inegável qualidade literária.

é visível a forma tranquila e honesta com que Valério vive a escrita. lima-lhe todas as arestas mas acredita que o seu conteúdo é orgânico. digo honesta porque o Valério se recusa a sair do triângulo que ele acredita ser o único possível para que um escritor não seja apenas um autor de um livro. o Valério é um escritor. com uma sensibilidade rara, um domínio seguro e claro da língua, os amigos certos, as escolhas certas e um editor que acreditou naquele primeiro livro com a convicção e confiança com que acredita já nos que ainda não estão escritos. o Valério é assim um caso de sucesso literário que só pode significar sucesso editorial. mas que no limite, podia só ser literário que o objectivo daqueles livros estava cumprido. e neste triângulo está o segredo, que não parte de opções por parte de cada um dos lados, e sim de generosas coincidências. e tenho a sensação que o futuro dirá que muitos belos frutos nos trará ainda esta generosidade.
- Não pode ser assim tão grave, não ler!
- É um escritor que mo diz? Vou-lhe explicar, meu caro: quando os homens desenvolvem estilos de sobrevivência na miséria crónica, sobrevém-lhes a necessidade de ajustarem a visão de si próprios à visão de um mundo sem perspectivas. É assim do seu interesse diminuir, o possível, o risco de ter uma alma. Em África fala-se imenso do combate à pobreza, à Sida, dos direitos humanos, mas isto não passa do modo como se camufla o desapego essencial: o homem putrefaz o homem. O único antídoto estava no símbolo, nessa metade de nós que só nos chega do exterior e que o intérprete consagra. Perdido o leitor perde-se a chave para o símbolo: a hospitalidade, a ideia grata de que só pelo outro, pela visita do mundo, existimos. Fica o mundo em liquidação.
[...]
- Bom, era uma pergunta de retórica. Mas começar por África, tão flagelada?
- Quem lhe disse que começou em África? Embora África esteja mais carenciada de ser restituída aos símbolos, porque aqui se delapida a vida deliberadamente. E há mais de três anos que ninguém lê Monsieur Teste, abaixo do equador...


António Cabrita
A Maldição de Ondina
Abysmo

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Primeira elegia

Se eu gritar, quem poderá ouvir-me, nas hierarquias
dos Anjos? E, se até algum Anjo de súbito me levasse
para junto do seu coração: eu sucumbiria perante a sua
natureza mais potente. Pois o belo apenas é
o começo do terrível, que só a custo podemos suportar,
e se tanto o admiramos é porque ele, impassível, desdenha
destruir-nos. Todo o Anjo é terrível.
Por isso me contenho e engulo o apelo
deste soluço obscuro. Ai de nós, mas quem nos poderia
valer? Nem Anjos, nem homens,
e os argutos animais sabem já
que nós no mundo interpretado não estamos
confiantes nem à vontade. Resta-nos talvez
uma árvore na encosta que possamos rever
diariamente; resta-nos a rua de ontem
e a fidelidade continuada de um hábito,
que a nós se afeiçoou e em nós permaneceu.
Oh, e a noite, a noite, quando o vento, cheio do espaço do universo
nos devora o rosto -, por quem não permaneceria ela, a desejada,
suavemente enganadora, que com tanto esforço se ergue frente
ao coração isolado? Será ela para os amantes menos dura?
Ah, um como o outro eles se ocultam de sua própria sorte, apenas.
Acaso não o saibas já? Lança de teus braços o vazio
em direcção aos espaços que respiramos; talvez que as aves
num voo mais íntimo sintam o ar assim expandido.
Sim, na verdade as Primaveras precisavam de ti. Muitas estrelas
aguardavam que nelas reparasses. Para ti
se erguia uma vaga no findo passado; ou,
ao passares por uma janela aberta,
um violino entregava-se-te. E tudo isso era para ti uma missão.
Mas soubeste cumpri-la? Não te distraía a contínua
expectativa, como se tudo te anunciasse
a Amada? (Como a poderias acolher em ti,
se grandes e estranhos pensamentos te invadem
ou abandonam ou em ti permanecem ao longo da noite?)
Se porém estás saudoso, canta as Amantes, cujo
celebrado sentir todavia está longe de ser imortalizado.
Canta, e como tu as invejas quase, as que foram abandonadas, cujo amor
te parece maior, do que o daquelas que o viram apaziguado. Não cesses
de recomeçar esse sempre insuficiente louvor;
e pensa: o herói dura sempre; até a sua queda mais não foi
do que o simples pretexto para o seu derradeiro nascimento.
Mas as Amantes são acolhidas de novo na esvaída natureza,
pois as forças que tudo isto produzem
não existem duas vezes. Terás tu cantado de Gaspara Stampa
já suficientemente a lembrança, para que a jovem mulher
a quem o amado deixou, possa sentir
pelo sublime exemplo de uma tal Amante: Ah, ser como ela!
Não será tempo de estas dores antiquíssimas se tornarem
finalmente fecundas? E não será tempo de nós,
os que amamos, nos libertarmos de quem amamos, como trémulos vencedores?
De sermos como a flecha que, vencendo o arco, se solta, toda ímpeto,
passando a ser mais do que ela própria? Pois em nenhum lugar se permanece imóvel.

Vozes, vozes. Ouve-as, ó meu coração, como outrora apenas
os santos as ouviam: de tal modo que o apelo imenso
os erguia do solo; contudo permaneciam ajoelhados,
inconcebivelmente, a isso destentos:
ouvir: era assim todo o seu estar. Mas tu não poderias sequer em ti escutar
a voz de Deus. Ouve, porém, o sopro, ininterrupta mensagem
que a ti chega, modelado no silêncio.
E agora ouves o murmúrio dos jovens que morreram.
Na verdade, onde quer que entrasses, fosse
em igrejas de Roma ou de Nápoles, não era o destino deles que no silêncio te interpelava?
Ou, então, uma inscrição sublime te impressionava,
como a da lápide que há pouco viste em Santa Maria Formosa.
Que esperam todos eles de mim? tenho de serenamente retirar-lhes
o véu de injustiça que por vezes perturba
o puro movimento dessas almas.

É certo ser estranho não mais habitar a terra,
não mais agir conforme o que mal acabáramos de aprender,
não mais dar às rosas e a todas as outras coisas identicamente promissoras
o significado do humano futuro;
não mais ser o que se tinha sido
em infinitamente angustiadas mãos, e abandonar até
o próprio nome, como se fosse um brinquedo quebrado.
É estranho não mais desejos desejar. Estranho,
passar a ver sem conexão, disperso pelo espaço,
tudo o que antes tinha unidade. Estar morto
é laborioso e cheio de recomeços, até que aos poucos
nos apercebamos da eternidade. - Mas todos os vivos
cometem o erro de fazer distinções demasiado rígidas.
Os Anjos, diz-se, não sabem muitas vezes se se movem
por entre os vivos ou por entre os mortos. A eterna corrente
consigo arrasta incessantemente todas as idades,
através destes dois domínios, e o seu som a ambos se impõe.
Afinal, de nós já não precisam aqueles que tão cedo nos foram arrebatados,
suavemente se vai perdendo o gosto pelo que é terreno, tal como ao crescer
nos desprendemos da doçura do peito materno.
Mas nós, que de tão grandes mistérios necessitamos, nós para quem o luto é tão frequentemente a fonte de feliz amadurecimento -: poderíamos sem eles existir?
Ou será vã a lenda de que foi outrora, ao prantear-se Lino,
que a primeira música ousou penetrar na aridez do espanto?
Então, apenas quando esse jovem, quase um deus, de súbito
no espaço do terror para sempre se ocultava, o vazio
atingiu por fim a vibração que agora nos arrebata, nos consola, nos ajuda.

Rainer Maria Rilke
in As Elegias de Duíno

cesariny sobre o valor do silêncio e da beleza da nudez

discurso ao príncipe de epaminondas, mancebo de grande futuro

Despe-te de verdades
das grandes primeiro que das pequenas
das tuas antes que de quaisquer outras
abre uma cova e enterra-as
a teu lado
primeiro as que te impuseram eras ainda imbele
e não possuías mácula senão a de um nome estranho
depois as que crescendo penosamente vestiste
a verdade do pão a verdade das lágrimas
pois não és a flor nem luto nem acalanto nem estrêla
depois as que ganhaste com o teu sémen
onde a manhã ergue um espêlho vazio
e uma criança chora entre nuvens e abismos
depois as que hão-de pôr em cima do teu retrato
quando lhes forneceres a grande recordação
que todos esperam tanto porque a esperam de ti
Nada depois, só tu e o teu silêncio
e veias de coral, rasgando-os os pulsos
Então, meu senhor, poderemos passar
pela planície nua
o teu corpo com nuvens pelos ombros
as minhas mãos cheias de barbas brancas
Aí não haverá demora nem abrigo nem chegada
mas um quadrado de fogo sobre as nossas cabeças
e uma estrada de pedra até ao fim das luzes
e um silêncio de morte à nossa passagem

Mário Cesariny

manual de prestidigitação

leiam e multipliquem-se


quinta-feira, 28 de agosto de 2014

a livraria que faltava às "minhas" editoras

está para acontecer uma coisa muito bela em Lisboa. uma livraria em bom, com bons livros e, o melhor de tudo, o livreiro mais inteligente e sexy do mundo todo. venham conhecer pessoalmente o Sr Teste e a beleza de livraria que é a dele, dia 6 de Setembro, às 14h.

o convite do Sr Teste


Caros Leitores,
A convite da Cossoul o Sr Teste passará a ser o livreiro de serviço na livraria da associação.
Coincidindo com as comemorações dos 129 anos da Associação Guilherme Cossoul, a abertura será dia 6 de setembro a partir das 14h até haver fôlego.
A livraria insere-se num espaço de sinergias composto por Restaurante/ Bar/ Café Concerto, Teatro, a Editora Artefacto e a estrear a Galeria Cossoul.
A cada dia postarei uma foto da vossa livraria em construção assim como das várias salas da Cossoul e cartaz da primeira exposição colectiva organizada pela vizinha de cima, Sara Rocio.
Contamos com a vossa presença para celebrar e partilhar este espaço criado para todos nós.
PS: Para instigar os Leitores atentos, as prateleiras estarão forradas a livros esgotados, raros, edições especiais e fundos/ novidades das mais especiais editoras a preços convidativos.

SIGC Santos
Av. D. Carlos I, n.º 61
Lisboa



domingo, 24 de agosto de 2014

o LEVA aceita textos propostos pelos autores

o LEVA entra agora numa nova fase e reformula o seu modus operandi, não modificando a sua missão e objectivo. Decidimos que agora é altura de gravar livros sem ser por encomenda aceitando sugestões de textos dadas pelos próprios autores, que nos cederiam os direitos, ou sugestões de editoras. Assim, quando as instituições ou clientes particulares nos contactassem, nós teríamos em carteira diversos textos para ceder, sem contrapartidas. Assim peço aos interessados que enviem as suas histórias (em papel ou gravadas, o que seria ainda melhor) para começarmos a fazer crescer o nosso volume de audio-livros.
no entanto é importante salientar que continuaremos a aceitar encomendas de potenciais clientes, foi e será sempre essa a nossa bandeira e objectivo principal, queremos apenas que mais audio-livros cheguem a quem precisa.

os contactos mantêm-se

rosa azevedo
leremvozalta@gmail.com
936 584 536
www.leremvozalta.org


sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Gerador

anda por aí uma revista nova, a GERADOR. vi-a numa banca e comprei-a quase instintivamente. sim, é verdade que tenho sempre uma grande curiosidade com revistas, ando sempre a ver o que há de novo. e o cenário é triste e cinzento, com algumas raras e justas excepções.
a GERADOR pretende ser uma revista sobre a cultura portuguesa. o que quer que isso queira dizer. e como é difícil dizer o que isso quer dizer eles tentam dizê-lo. o que transforma esta revista num objecto sigular no tratamento dos conteúdos - por um lado explicam bem o que querem, por outro abrem o leque. e fazem-no com uma grande mestria. 
é nesta abertura que, a meu ver, está um ponto forte da revista e um ponto fraco das outras - há uma total clareza e diálogo com o leitor acerca dos processos necessários ao surgir da revista. por outro lado apresenta todos os colaboradores, contextualizando cada texto. pode parecer menor esta característica da revista mas não é, enquanto a lemos este torna-se talvez um dos seus pontos fortes, a informalidade e o constante diálogo entre a revista e nós, leitores.
a revista terá um tema todos os números e convidados de várias áreas da cultura portuguesa para o abordarem. em bom, claro, se bem que este número destila amor. o tema é declarações de amor e talvez seja excessiva a dedicação ao tema. mas enfim, é tão plural a arte de cada um que a revista fica um monumento. e, claro, quando se convida pessoas para escrever sobre um tema e os convidados não se leram uns aos outros é um risco, sim.
lê-se de um fôlego e pretende ser um objecto de colecção. para mim já é.

página do Facebook

Sobre

O Gerador é uma plataforma de acção e comunicação para a cultura portuguesa!
Descrição
O que é o Gerador?
É uma plataforma de acção e comunicação para a cultura portuguesa.
• Acção porque o Gerador produz iniciativas que promovem os principais motores da cultura portuguesa.
• Comunicação porque criamos os espaços para divulgação das obras e dos seus autores através de uma revista e de uma presença online dinâmica e participativa.

Quais são os nossos propósitos?
O Gerador existe porque tinha de ser. E porque perseguimos 5 ideias que queremos deixar bem vincadas na sociedade portuguesa:
• Lembrar todos que a cultura é identidade e, por isso, é composta por arte, literatura, cinema ou teatro, mas, também, por banda desenhada, gastronomia, ofícios ou costumes populares.
• Sublinhar que a cultura está em todas as ruas e em todas as casas, sem diferença entre o norte e o sul, o interior ou o litoral, as metrópoles ou as aldeias.
• Destacar quem produz e divulga a cultura portuguesa, seja ele um artista plástico, um artesão, um músico, um chef, um graffiter, um futebolista, um cientista, um encenador ou um CEO.
• Criar e produzir iniciativas para a cultura portuguesa a que todos possam aceder e participar, afastando a ideia da cultura difícil, complexa e longínqua.
• Inspirar as pessoas a serem mais participativas, mais disruptivas e a pensarem diferente no seu dia-a-dia profissional, afectivo e de ócio.

sábado, 16 de agosto de 2014

se pudesse só ter lido um poema na vida talvez escolhesse este

And Death Shall Have No Dominion
DYLAN THOMAS

And death shall have no dominion. 
Dead men naked they shall be one
With the man in the wind and the west moon;
When their bones are picked clean and the clean bones gone, 
They shall have stars at elbow and foot; 
Though they go mad they shall be sane,
Though they sink through the sea they shall rise again;
Though lovers be lost love shall not;
And death shall have no dominion.

And death shall have no dominion.
Under the windings of the sea
They lying long shall not die windily;
Twisting on racks when sinews give way,
Strapped to a wheel, yet they shall not break;
Faith in their hands shall snap in two,
And the unicorn evils run them through;
Split all ends up they shan’t crack;
And death shall have no dominion.

And death shall have no dominion.
No more may gulls cry at their ears
Or waves break loud on the seashores;
Where blew a flower may a flower no more
Lift its head to the blows of the rain;
Though they be mad and dead as nails,
Heads of the characters hammer through daisies;
Break in the sun till the sun breaks down,
And death shall have no dominion.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

quando as crianças contam as histórias do Afonso Cruz

 

num dia de Verão, na praia do Almograve, juntei quatro crianças à volta de uma toalha (e a minha mãe também) e pedi-lhes que contassem a história do livro de ilustração do Afonso Cruz, CAPITAL, da Pato Lógico. entre muitas invenções e trabalho de imaginação saiu esta bela história. Assinam a história  Leonor (14), Afonso (12), Luísa (6), Guilherme (7), Graça (não se diz a idade das senhoras). a fixação do texto é minha, as palavras deles. se tiverem o livro acompanhem com as imagens, torna tudo muito mais divertido. 
 






Era uma vez um homem grande, com mãos gigantes e saltos altos, que ofereceu ao seu neto, Finn, um porco mealheiro. Finn apaixonou-se pelo mealheiro e andava com ele para todo o lado. Chamou-lhe Jake. Às vezes Jake ganhava vida e fazia cocó no chão mas Jake era tão especial que o cocó dele cheirava a rosas da cor do arco-íris e a chocolate. Finn gostava disto porque era daltónico e tinha por isso desenvolvido um extraordinário olfacto. Jake também não dormia porque sentia que tinha de proteger Finn que era asmático. Ficava a noite toda a olhar para ele para ter a certeza de que tinha um sonho tranquilo.

Finn e Jake cresceram juntos. Jake ia crescendo com as moedas que Finn lhe tinha dado, e não eram moedas de chocolate... Finn levava Jake para todo o lado. Levava-o muitas vezes com a avó ao parque, uma senhora com uma figura muito especial, sempre com as suas meias de descanso cinzentas, pelos na cara e puns tão ruidosos que atraíam os estranhos pássaros do parque que a seguiam para todo o lado.

Finn tinha um namorado, Felisberto, e ambos jogavam futebol na praia. Jake era a mascote e assistia a todos os jogos. Nesses passeios ao ar livre Finn jogava com o porco ao busca a moeda. Jake era cada dia mais maluco por moedas e por vezes desaparecia para as procurar durante imenso tempo. Finn teve mesmo de, a certa altura, usar uma trela. Todos o adoravam e lhe faziam festas quando passava.

Jake era insaciável. As moedas que Finn lhe dava começaram a ser insuficientes. Finn decide assim casar com Clarabóia, uma menina de boas famílias que conhecera no parque. Felisberto fica desiludido mas aceita, pois percebe que Jake se tornaria insuportável se não tivesse mais moedas.

Com o passar do tempo Jake começa a ficar agressivo e a comer pessoas, as moedas já não lhe chegavam. Comia pessoas ricas, claro. Felisberto fica preocupado e tenta avisar Finn, que parece bastante confortável com a situação. Finn na verdade começava a enriquecer e tentava, sem grande sucesso ao início, mostrar a Felisberto a beleza desta nova vida. Finn parecia-se cada vez mais com o avô que lhe tinha dado o Jake. As mãos cresciam desmesuradamente. Com o tempo Felisberto começa a ceder e a pensar que talvez Finn tenha mesmo razão, ao ver o luxo e o brilho que rodeavam Finn, que se vestia sempre de forma elegante com fato e gravata e passava o dia a beber champagne. Felisberto acaba por aceder a tornar-se sócio da Empresa do Dinheiro, a empresa de Finn. 

Mas assim que Felisberto enriquece é comido pelo porco Jake. Clarabóia começa a assustar-se com a agressividade do mealheiro e mesmo Finn começa a reparar que este está descontrolado. É o salve-se quem puder. Na verdade Jake está cada vez mais insaciável. Já não lhe chegam as moedas, nem as pessoas, nem as pessoas ricas, nem as casas que come, nem cidades inteiras. Jake acaba por comer o planeta que agora já não existe, existe sim um porco gigante em órbita, à volta do sol.