segunda-feira, 17 de abril de 2017

Quartos Alugados, Alexandre Andrade

Escrever sobre Alexandre Andrade é uma tarefa ingrata porque há escritores de quem apetece guardar silêncio. Isto porque são escritores do silêncio por ofício, porque defendem, ainda que intuitivamente, a relação autor-leitor como a única relação possível. Defendem a solidão dos dois, a mensagem passada entre um e outro, a independência do texto face a qualquer influência que não seja a própria leitura.
Há um leitor de hoje, exigente, que procura esse espaço de leitura e que, em consequência, procura esses autores que, não sendo raros, têm de ser procurados.
O nosso século trouxe-nos uma nova forma de ver a literatura. Os autores transformam-se em figuras públicas, um livro é comprado sem a certeza de que será lido, vítima do consumo imediato proporcionado pelas redes sociais e pelas festas do livro, lançamentos e apresentações, que se multiplicam. Há muita celebração à volta de um livro, o que não seria grave se não fossem, muitas vezes, auto-suficientes, independentes do texto. Se acrescentassem leitores aos livros, se não funcionasse apenas como montra fechada do mesmo. É fácil perceber que um leitor exigente e atento, e ainda há muitos, queira estabelecer e dar prioridade a essa relação íntima com o autor. Os leitores reais compreendem e valorizam essa intimidade e foram eles que descobriram o Alexandre Andrade.
Na verdade, este não é o primeiro livro do Alexandre Andrade mas foi aquele que o pôs no centro das conversas literárias. Este é o seu terceiro livro de contos e tem ainda dois romances, mas foi com este livro que apareceu em tops nacionais, listas de melhores livros do ano (as terríveis e ingratas listas), tornou-se um fenómeno. Há muitos outros fenómenos literários do género que tiveram diversas origens, muitos deles depois de o autor já ter publicado inúmeros livros. O que é estranho neste caso é o porquê desta popularidade, uma vez que o Alexandre Andrade não cabe em nenhuma dessas categorias. No meio literário actual são raros os fenómenos literários que se devem exclusivamente à qualidade do texto. Aqui talvez estejamos perante um desses casos. Este livro é, apenas, consequência de si próprio.
Editado pelo Exclamação é o único autor vivo da colecção Avesso. Esta colecção começou com o propósito de publicar dez livros de dez autores, portugueses e estrangeiros, sendo que a lista dos dez aparece desde o primeiro livro. Não propondo uma ordem anunciou que os dez livros sairiam conforme fossem estando prontos. Alexandre Andrade surge ao lado de nomes como Lima Barreto ou Alphonse Allais, autores que Rui Manuel Amaral, responsável pela colecção, diz serem autores obrigatórios mas muito esquecidos na actual edição portuguesa. É a própria editora que se refugia nos textos e defende que são eles quem tem de criar uma voz própria, que os defenda e represente. Não elaboram estratégias de promoção, de nenhum tipo. Querem que o texto seja o que é, efectivamente, o livro.
Parece-nos indiscutível que foi o texto dos Quartos Alugados quem trouxe os leitores. O segredo do Alexandre Andrade foi-se espalhando, a partir de uns poucos que já tinham percebido o seu potencial. A literatura portuguesa saturou-se de lugares comuns. Como afirmámos em cima a explosão editorial do início do século trouxe ao leitor uma necessidade de se tornar mais exigente, logo, mais crítico e inteligente. O excesso de lixo literário juntamente com uma exposição pública de processos editoriais de textos que ainda não deveriam ser publicados traz-nos um trabalho de respigadores que se torna, no final, muito recompensador. Quando alguns bons leitores descobrem um bom livro e espalham a notícia os leitores multiplicam-se e transformam o livro num sucesso de vendas exclusivamente textual.

É neste contexto que surge a prosa de Alexandre Andrade. Quartos Alugados reúne uma série de contos que têm em comum o que o título indica. O quarto aparece aqui com duas dimensões: como parte decepada da casa, uma parte de um todo que pouco ou nada se conhece, por um lado, e espaço transitório, efémero, por outro.
Enquanto cenário de casa decepada deparamo-nos com personagens que procuram uma parte qualquer que está para além do quarto, secreta. Parte de si, ou exterior a si, normalmente ligada à casa. O que importa aqui é perceber que estamos sempre na esfera do privado nessa procura do mistério. Há transversalmente a todos os contos um segredo não revelado. A personagem procura esse segredo de forma compenetrada, quase obsessiva. Entramos de forma discreta mas absoluta na intimidade de cada personagem, no sentido em que as nossas obsessões são o que existe de mais privado.
Enquanto cenário transitório encontramos personagens que passam pelo espaço tentando entendê-lo e revelá-lo com a urgência própria de quem sabe que o tempo que vai ocupar aquele espaço é limitado. A obsessão mantém-se, também neste segundo caso. Os tempos são curtos. Os quartos são nossos transitoriamente, não há neles espaço de apropriação ou de enraizamento. O olhar sobre eles é quase sempre despegado, inóspito e muito livre.
Em qualquer um dos cenários estamos perante um mistério. E o mistério de qualquer um dos contos vale por si próprio, não se revela. O autor tenta aqui personalizar e ficcionar o mistério, é ele a personagem principal dos contos - nunca o seu fim mas a sua existência real. É natural a tendência de querer resolver problemas, e é essa tendência que o autor pretende contornar nestes contos. Por norma um problema é visto como um pedido de resposta, o questionamento é um meio e não um fim. A resposta ficcional às histórias de Alexandre Andrade não é a resposta tradicional. Não assume forma de resposta, usa o questionamento como o fim. Não há um fim para o mistério mas há, no entanto, um encerramento, na aceitação do próprio mistério, ou seja, os contos encerram-se em si próprios, não ficam abertos ou suspensos. Há um ciclo que se fecha em cada um deles. Há um abismo negro e silencioso, estranhamente reconfortante em cada uma das histórias de Quartos Alugados. Há uma suspensão do tempo característica do ambiente inexplicável e quase místico que o autor cria: “Eu respirava o tempo como um gás intoxicante, estava sentado numa cadeira de ferro e inspirava o tempo, expirava-o com medo do seu poder. O tempo. Agora limito-me a estar atento aos seus abcessos contaminados pela memória e pelo remorso, de pé sobre esta terra que piso sem deixar marca.” Suspensão entre um tempo que, apesar de ser interior, existe também fora das personagens, num universo nada transparente, antes opaco e quente, como descrito no início do conto Voi Che Sapete: “Há quem afirme que as vagas de calor demasiado intensas têm o poder de diluir a virtude e a moral num caso moroso de acasos e acidentes.”. Estamos dentro de um ambiente obscuro, cru e objectivo que, apesar do que seria expectável, no final é reconfortante e deslumbrante.
Porque acima de tudo há realmente um deslumbramento inteligível, que contrasta com a absoluta pureza da linguagem, facilmente confundida com frieza, mas que é na verdade uma extrema depuração. A procura da palavra exacta, essencial, necessária. Nada é excessivo na escrita de Alexandre Andrade. Nada existe para decorar ou adoçar o texto. Tudo nos chega com as palavras certas, mesmo que a mensagem que nos chega seja encriptada. Alexandre Andrade revela-se um prosador de excelência, que domina de forma perfeita técnicas literárias e ficcionais o que o transforma, mais do que num escritor de encantamento, num escritor necessário.
 
Quartos Alugados 
Alexandre Andrade
Editora Exclamação, 2015
 Colecção Avesso
 


sexta-feira, 14 de abril de 2017

Erskine Caldwell ou o fim da humanidade

Já aqui falei do Caldwell. De como encontrei estes livros velhos e imóveis da casa de onde a minha avó teve de sair. Trouxe três para minha casa, fui lendo um a um, até chegar a este.

Não sabia muito do Caldwell e não li nada sobre este livro quando o comecei a ler. E agora que o acabei, e que tinha tanto que dizer, fui ver o que andaram a escrever. E é tudo curto, insuficiente, e nenhum texto foi ao sítio que era o sítio onde era preciso encontrar o Caldwell. Este livro não é sobre o pós-crash, sobre a América abandonada e pobre. Esse é só o tempo onde a história acontece. Mas a história acontece num sítio, na beira da estrada do tabaco, numa casa que pertence a uma família "enquanto se mantiver de pé". E essa família teve 17 filhos e só sobram dois. E nenhum os visita, nem nunca mais voltou a casa. Nesta casa sobram cinco pessoas sem traço de humanidade. E aqui que o livro se coloca. Na terra de ninguém onde não há comida, nenhuma, nem humanidade. Há apenas um feroz tom erótico que mostra a animalidade latente. E depois o nada. O único traço de amor é o amor de Jeeter, o pai, à terra. As personagens são feias, com deficiências físicas, a roupa prende-se ao corpo com cordas para que não se desfaça no caminho, a avó tarda em morrer, e há uma filha, a mais linda menina do mundo, que foi forçada a casar com Lov com doze anos e que sem dizer uma palavra, sem nunca aparecer em cena,  prova ter sido o último traço de humanidade a abandonar a casa em ruínas. De resto estamos perante monstros, animais esfomeados.
O livro passa-se em cinco dias apocalípticos. O leitor diverte-se com o excesso de desumanidade e logo depois sofre por ser incapaz. Por perceber que se são humanos tem de haver neles qualquer tipo de sofrimento. E esse sofrimento vem uma vez só. E ainda assim Caldwell faz questão de não o nomear. Porque aqui há cinco dias para deixar que o mundo acabe. E esperar que das cinzas, dos filhos que não chegámos a ver, da não memória que sobra da Estrada do Tabaco, sobre qualquer resto de humano. Mas, ainda assim, é só nossa a esperança. Nunca será essa a mensagem do Estrada do Tabaco. Aqui só sobra o silêncio e o som de uma buzina, insistente, ao longe, do carro que nunca mais voltará a assomar ao fundo da colina.