sexta-feira, 9 de março de 2018

Mulheres e Revolução


Mulheres e Revolução
Maria Velho da Costa

Elas vão à parteira que lhes diz que já vai adiantado. Elas alargam o cós das saias. Elas choram a vomitar na pia. Elas limpam a pia. Elas talham cueiros. Elas passam fitilhos de seda no melhor babeiro. Elas andam descalças que os pés já não cabem no calçado. Elas urram. Elas untam o mamilo gretado com um dedal de manteiga. Elas cantam baixinho a meio da noite a niná-lo para que o homem não acorde. Elas raspam as fezes das fraldas com uma colher romba. Elas lavam. Elas carregam ao colo. Elas tiram o peito para fora debaixo de um sobreiro. Elas apuram o ouvido no escuro para ver se a gaiata na cama ao lado com os irmãos não dá por aquilo. Elas assoam. Elas lavam joelhos com água morna. Elas cortam calções e bibes de riscado. Elas mordem os beiços e torcem as mãos, a jorna perdida se o febrão não desce. Elas lavam os lençois com urina. Elas abrem a risca do cabelo, elas entrançam. Elas compram a lousa e o lápis e a pasta de cartão. Elas limpam rabos. Elas guardam uma madeixita entre dois trapos de gaze. Elas talham um vestido de fioco para uma boneca de papelão escondida debaixo da cama. Elas lavam as cuecas borradas do primeiro sémen, do primeiro salário, da recruta. Elas pedem fiado popeline da melhor para a camisa que hão-de levar para a França, para Lisboa. Elas vão à estação chorosas. Elas vêm trazer um borrego à primeira barraca e ao primeiro neto. Elas poupam no eléctrico para um carrinho de corda.

Coisas que elas dizem:
— Se mexes aí, corto-ta.
— Isso não são coisas de menina.
— O meu homem não quer.
— Estuda, que se tiveres um empregozinho sempre é uma ajuda.
— A mulher quer-se é em casa.
— Isto já vai do destino de cada um.
— Deus não quiz.
— Mas o senhor padre disse-me que assim não.
— Dá um beijinho à senhora que é tão boazinha para a gente.
— Você sabe que eu não sou dessas.
— Estás a dar cabo do teu futuro com uns e com outros.
— Deixa-te disso, o que é preciso é sossego e paz de espírito.
— Comprei uns jeans bestiais, pá.
— Sempre dá para uma televisão daquelas novas.
— Cada um no seu lugar.
— Julgas que ele depois casa contigo?
— Sempre há-de haver pobres e ricos.
— Se tu gostasses de mim não andavas com aquela cabra a gastar o nosso.
— Põe o comer ao teu irmão que está a fazer os trabalhos.
— Sempre é homem.

Elas olham para o espelho muito tempo. Elas choram. Elas suspiram por um rapaz aloirado, por duas travessas para o cabelo cravejadas de pedrinhas, um anel com pérola. Elam limpam com algodão húmido as dobras da vagina da menina pensando, coitadinha. Elas escondem os panos sujos de sangue carregadas de uma grande tristeza sem razão. Elas sonham três noites a fio com um homem que só viram de relance à porta do café. Elas trazem no saco das compras uma pequena caixa de plástico que serve para pintar a borda dos olhos de azul. Elas inventam histórias de comadres como quem aventura. Elas compram às escondidas cadernos de romances em fotografias. Elas namoram muito. Elas namoram pouco. Elas não dormem a pensar em pequenas cortinas com folhos. Elas arrancam os primeiros cabelos brancos com uma pinça comprada na drogaria. Elas gritam a despropósito e agarram-se aos filhos acabados de sovar. Elas andam na vida sem a mãe saber, por mais três vestidos e um par de botas. Elas pagam a letra da moto ao que lhes bate. Elas não falam dessas coisas. Elas chamam de noite nomes que não vêm. Elas ficam absortas com a mola da roupa entre os dentes a olhar o gato sentado no telhado entre as sardinheiras. Elas queriam outra coisa.
Elas fizeram greves de braços caídos. Elas brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta. Elas gritaram à vizinha que era fascista. Elas souberam dizer salário igual e creches e cantinas. Elas vieram para a rua de encarnado. Elas foram pedir para ali uma estrada de alcatrão e canos de água. Elas gritaram muito. Elas encheram as ruas de cravos. Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes. Elas trouxeram alento e sopa aos quartéis e à rua. Elas foram para as portas de armas com os filhos ao colo. Elas ouviram faltar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas. Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra. Elas choraram de ver o pai a guerrear com o filho. Elas tiveram medo e foram e não foram. Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias das herdades abandonadas. Elas dobraram em quatro um papel que levava dentro urna cruzinha laboriosa. Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões. Elas levantaram o braço nas grandes assembleias. Elas costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos. Elas disseram à mãe, segure-me aqui os cachopos, senhora, que a gente vai de camioneta a Lisboa dizer-lhes como é. Elas vieram dos arrebaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte de casa fechada. Elas estenderam roupa a cantar, com as armas que temos na mão. Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros homens. Elas iam e não sabiam para aonde, mas que iam. Elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado. São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas.

in Cravo (1976).

E o próximo nosso é o nosso Rui Caeiro



O Rui foi chegando devagar à Snob. Com aquele passo lento que o caracteriza, lento de quem tem todo o tempo, sempre. Aproximou-se da nossa banca de livros no Jardim da Parada e o Duarte reconheceu-o logo. Faz agora, exactamente, um ano.

Desde aí o Rui Caeiro foi-se apropriando da nossa vida. Primeiro com muitas conversas com o Duarte ao telefone e alguns encontros casuais. Sempre com aquela característica que é muito dele, a do acaso. Sem regras ou obrigações. Sempre que se lembrava, sempre que queria partilhar um texto ou uma memória. O Rui, como bom conversador que é, tem muitas memórias que quer partilhar. E assim surgiu a ideia de um livro (ou melhor, três livros), e o Rui ofereceu-o à Snob. Com aquela generosidade desprovida de encantamento, só uma rude honestidade. Depois o Rui tornou-se quotidiano e amigo e confidente da Snob. Parte das rotinas. E todas as semanas o livro ia crescendo em mesas de restaurantes e cafés. Sem falhar.

O Rui passou por toda a literatura dos últimos 50 anos do séc XX. Não sendo um autor de palco, fez um caminho que não é de todo um caminho identificável dentro deste showbiz literário. Mas é identificado por todos. Sem rodeios, sem forçar caminho, sem se encaixar em nenhuma categoria literária, a escrever.

Para a Snob este é o terceiro livro. E, não tendo nós nenhuma linha editorial identificável (porque não existe), este livro tornou-se necessário. Porque são as memórias de um grande escritor que é um escritor da nossa rotina. E um escritor que se tornou escritor da nossa rotina enquanto o livro se colava. Sem margens, sem limites.








Livro em pré-venda aqui.





terça-feira, 6 de março de 2018

||SNOB CALL - Rui Caeiro||







É com grande honra e orgulho que apresentamos o nosso novo livro. Que na realidade não é um mas sim dois livros que se espelham num mesmo volume em rotação contínua.

A pré-venda termina no próximo dia 11 de Março. Os subscritores terão direito a um exclusivo terceiro inédito (ver imagem nos comentários): um desdobrável em acordeão, numerado e assinado pelo Rui.

O valor da pré-venda é de €12, portes de envio incluídos para Portugal Continental. Mas também enviamos para qualquer parte do mundo. Para isso deverão transferir o valor de €12 para o IBAN: PT50 0035 0995 00674695530 36 (José Duarte da Silva Pereira), enviando comprovativo e nome - para figurar nos agradecimentos - para os livreiros por aqui ou para coleccaopedante@gmail.com.
Desde já um grande bem haja a quem nos acompanha, ajuda e, acima de tudo, a quem continua a ler connosco.

Excertos:

DIÁLOGOS MARADOS
"— Zé, conta-me a história do teu encontro com o ovni, perto de Monsaraz.
— Não gosto de falar nisso, diz-me o meu primo Zé. Ninguém acredita na história, dizem que eu devia estar bêbado.
Hoje já não há ninguém para contar a história. Tu já não estás cá para o fazer.
Eles, que eu saiba, não voltaram.
Mas hoje, ao perguntar-me porque se mostraram eles a ti e não a outro qualquer passeante, creio que sei a resposta.
Porquê a ti? Porque tu eras um homem bom e, quem sabe, um homem bom é difícil de encontrar e a bondade ainda será uma espécie de mais-valia no mundo extraterrestre."

UM MALUCO VEM POUSAR-ME NA MÃO
"Cada um deles é uma bazuca de dois canos, é uma esfera escorregadia, é uma longa espera, é um lago, é um lego, é um mundo.
E que até, em casos extremos (o dos tais tarados com vocação para líder) se pode fazer explodir, num qualquer estúpido atentado mais ou menos bombista, mais ou menos suicida.
E que pode por igual ser um exemplo reconfortante — para todo um universo vasto, descontrolado e perdido."