sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

a condição da edição independente [entre aspas], hoje

Zona Autónoma Temporária
Hakim Bey
a amizade e o carinho podem trazer consigo um perigoso e falível discurso crítico. desde que comecei a minha investigação sobre pequenas editoras houve muita coisa que mudou, conheci muitas pessoas, mudei o meu norte, todos os meus pontos de vista, os quotidianos. acabei por de alguma forma começar a viver dentro dos meus editores e livreiros mais do que a trabalhar sobre eles. a cabeça multiplica-se com pensamentos e questões sobre estes temas, sendo as questões o ponto fundamental - o interminável questionamento, o pôr em causa o que preferíamos que fosse de outra forma mas que na verdade não é.

publicar em pequenas editoras terá sempre dois lados de uma só questão - a independência perante as rigorosas leis do mercado cada vez mais castradoras. por um lado isto permite-nos delinear em absoluto a nossa linha editorial, escolher os autores e os textos. por outro lado retira-nos alguns anti-corpos contra a contaminação dos grupos, amigos e inter-influências contra as quais estamos desarmados. o mercado como qualquer outra forma de autoridade ajuda-nos a delinear de forma externa a nós um esquema de actuação. a liberdade editorial permite que não tenhamos de viver sob esse jugo mas que então sejamos absolutamente responsáveis pelos leitores que formamos, pelos autores que escolhemos editar. esta liberdade é fascinante por estar a delinear um futuro absolutamente incerto do que será o panorama editorial dos primeiros vinte anos deste século mas à liberdade vem sempre associada uma grande dose de responsabilidade, já o diziam os existencialistas que tanto admiravam estes autónomos movimentos culturais. e o que tenho descoberto e aprendido com os piores e mais negativos discursos relativos a esta gente toda é que é fácil cair numa lógica que envolve à volta do livro tudo o que está para além do texto, perdendo assim o que realmente importa. a um livro ligamos um lançamento, as críticas dos amigos, fotografias nas redes sociais, problemas de distribuição, questões financeiras, encontros e outros eventos. e o carácter sagrado do texto e da sua criação perde-se no meio de um mar contaminado de outros focos de luz.

não quero com este texto mostrar uma postura negativa, não foi isso que ganhei com estes primeiros seis meses de investigação. o que percebi foi que é também dos leitores a responsabilidade que vem da liberdade do meio editorial. que os leitores estão mais próximos destes livros e destes autores, que os conhecem de perto, podem ler os textos com uma luz diferente e mais esclarecida. e que um leitor atento pode assim perceber as excepções ao que acabei a dizer - aliás se interessa a alguém perceber estas questões é mesmo ao leitor porque é o texto que lhe chega que pode vir contaminado. e percebemos rapidamente que quando descobrimos um editor que se foca no texto e no autor e posteriormente no leitor, desfocando-se de tudo o que está para além disso, sabemos que estamos perante um editor raro. e perante um autor raro e tornamo-nos assim leitores profícuos e maiores. e tudo isto porque acredito fortemente que um texto que recebe estas contaminações não nos chega nas condições que poderia chegar se não as tivesse - ainda que seja questionável esta afirmação.

o tão falado amor aos livros tem de ser substituído pelo amor ao texto. e é necessário recuperar nessa relação de amor a intimidade nossa, leitores, com o texto. e não estou com isto a abolir as leituras públicas, os lançamentos e as festas, estou só a dizer que não é aí que está o foco. e felizmente para muitos dos meus editores (e muitos dos que estão agora a nascer) aquilo que estou a dizer é absolutamente linear. e é com esses livros que ando na mochila.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

[do fim das formas literárias]

Em todos esses arautos da modernidade se assiste ao nascimento do poema sem eu e sem arroubos expressivos, do "drama-poesia" no sentido que a expressão ganha em alguém como Maria Gabriela Llansol, que, rejeitando a poesia como forma de expressão, assimila totalmente ao seu texto de prosa esta postura do sujeito posto à distância, numa escrita muitas vezes referida como "poética", mas que recusa os excessos da emoção ("sem perda de sensibilidade") e da projecção (auto)biográfica, através do trabalho, antimimético, de (trans)figuração na linguagem. E aqui, como em tanto poema autenticamente moderno, figurar, criar figura, é objectivar a expressão. Para Llansol, é esse "o poema que vai adiante": o de uma linguagem com um alto grau de originalidade, numa busca incessante da energia do "sexo do texto", incomparavelmente criativa e carregada de interrogações, mas também da densidade do novo que forma uma trama cerradíssima, numa escrita sempre fragmentária, completa e sempre sem resto.

Geografia Imaterial
João Barrento
Documenta, 2014

[do acontecimento na poesia]

O poema é quase sempre mais uma construção (e, sendo assim, o meu acesso a ele não é imediato nem espontâneo, tenho de aprender a desconstruí-lo), construção essa que permite, a quem escreve, agir com as palavras, dar a ver e ouvir o mundo de uma forma que a civilização e a razão sublimam ou recalcam; e a quem lê, ter acesso, talvez mais profundo e luminoso, ao que está a acontecer.

João Barrento
Geografia Imaterial
Documenta, 2014

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

no sorriso louco das mães


No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e orgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo.
São silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos. Porque
os filhos são como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudez de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado
por dentro do amor.

Herberto Helder