ao ler estes artigos percebo que o que mais me faz persistir nesta leitura horizontal da literatura portuguesa, numa perspectiva aparentemente historicista da literatura que só o é para mostrar que não há literatura que possa ser historicista, é a percepção clara de que fazemos parte de uma história da escrita, e com ela, de uma história da leitura. não há ciência que aguente a literatura porque ela é fruto de leituras e as leituras são fruto dos seus leitores, todos eles marcados pela intuição. a nossa leitura é só mais uma que se soma à de Gaspar Simões. lemos Herberto Helder do mesmo sítio de onde também ele o leu, das páginas do livro, mas temos em nós histórias diferentes, só isso. leitores diferentes, também, claro, mas esses existem horizontal ou verticalmente, ao nosso lado ou há 50 anos. não quero com isto afirmar que não é importante o contexto de um escritor, pelo contrário - os leitores que somos têm sempre a consciência de que ao texto muitos elementos se somam e contrapõem, às vezes até se substituem, impedindo a leitura. todos os verdadeiros leitores sabem, ainda que tenham dificuldade em assumi-lo, que um texto não vale sozinho. o que afirmo é que somos todos leitores do mesmo texto e que o que muda, o contexto de cada um, não se altera só historicamente e sim a todos os níveis que influenciam a leitura. daí a impossibilidade do historicismo da literatura.
o que interessa aqui é que a descoberta deste livro me ajuda a perceber a forma como quero ensinar e entender a literatura. como uma linha transversal, uma sequência de livros que se lêem cruzados e simultaneamente. que a história da literatura é muito mais uma história da leitura do que da escrita, da nossa intuição e entendimento do texto que nos é mostrado.
e o podermos estar atentos à literatura contemporânea não é mais que a possibilidade de sermos uns verdadeiros privilegiados. privilégio em podermos falar dos livros publicados hoje com a tranquilidade e transparência com que Gaspar Simões lê Herberto dizendo deste livro que "os contos de Herberto Helder, não sendo, como não são, verdadeiros contos, peças literárias objectivas plenamente realizadas enquanto arte literária, valem, para nós, mais do que isso, pois neles viemos a encontrar o mea culpa de um poeta que viu na poesia uma espécie de inviabilidade para o libertar de si próprio."
apesar do ruído resta-nos exercitar a intuição adivinhando os potenciais autores promissores, o que quer que esta palavra, por vezes tão perigosa, queira dizer. este exercício tem, seja como for, pouco interesse. o interesse maior que lhe adivinho é esta insubstituível sensação de que fazemos parte desta história maior e sem ciência, toda feita de intuições e emoções, a história da leitura.