quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

As irmãs Brontë

Em 1847 a editora Smith, Elder & Co recebe três romances assinados por três nomes quase deconhecidos da literatura inglesa, nomes que até aí tinham apenas publicado um livro conjunto de poemas que tinha sido um verdadeiro fracasso comercial. Eram eles o Jane Eyre de Currer Bell, The Wuthering Heights de Ellis Bell e Agnes Grey de Acton Bell.

Os três romances tinham sido escritos por três irmãs que, reféns da sociedade vitoriana do séc XIX, acharam melhor assiná-los com nomes de homens e só após a sua publicação darem a conhecer a sua identidade. São elas Charlotte, Emily e Anne Brontë. 

É sempre possível lermos um livro sem contexto, aliás é essa uma das grandes lutas dos leitores de todo o mundo, a defesa mais ou menos convicta de que o texto vale por si, dizem uns, e de que o contexto enriquece o texto, dizem outros. No entanto, aqui vamos, para já (e verão que faz sentido), deter-nos na vida das irmãs Brontë, que não altera o texto de cada um dos livros mas sim acrescenta um contexto que é em si próprio uma lição e um pensamento sobre a resiliência destas escritoras num mundo onde as mulheres começavam a poder escrever mas não podiam, nunca, escrever nenhum destes livros.

As três irmãs pertenciam a uma família de cinco irmãs e um irmão. As duas irmãs mais velhas morreram ainda crianças vítimas de tuberculose, com poucas semanas de diferença. O pai, responsável único pela educação das crianças, não conseguindo lidar com a dor e a culpa de saber que o internato onde as irmãs se encontravam era o grande responsável por estas mortes, traz as outras filhas para casa. Essa casa encontrava-se ao fundo de uma povoação, rodeada por montes ventosos e frios, uma terra inóspita e escura. O pai, obcecado com os incêndios, não tem cortinas ou tapetes em casa. É uma casa sóbria e cinzenta. Chama para educar as filhas uma irmã, severa ainda que justa, tia que substitui para as Brontë a mãe que lhes morrera muito cedo. 

É neste ambiente que as irmãs e o irmão mais velho, Branwell, crescem selvagens, com a sua criatividade como único utensílio artístico. Uns soldados de madeira eram os únicos brinquedos e serviram como ponto de partida para histórias fantásticas, mundos partilhados entre eles, histórias detalhadamente descritas. Todos os irmãos eram extremamente dotados de uma sensibilidade artística fora do comum e passavam os seus dias a vivê-la intensamente, numa obrigatória mas cada vez mais desejada solidão.

As irmãs Brontë cresceram quase sem conhecer ou ter contacto com a sociedade patriarcal da Inglaterra do séc. XIX. Aprenderam a desenvolver a imaginação como lugar de conforto. Criaram um mundo onde elas tivessem o lugar que queriam ter. E foi assim que escreveram estes três livros. Não o fizeram por serem radicais, eram antes feministas antes do tempo por terem decidido que, se criavam figuras femininas, elas iam poder exercer o poder que a literatura traz em si - o poder de modificar e influenciar o leitor.


Emily Brontë
The Wuthering Heights
Este livro exerce sobre o leitor do séc XXI o fascínio da intemporalidade. É um livro que mesmo escrito hoje poderia ser considerado intemporal. Um dos boatos que corre sobre o livro é de que é um livro gótico com fantasmas. Mas não é um livro de fantasmas, é um livro sobre o poder da obsessão, sobre a ideia da memória dos nossos mortos, de como podemos transformar essa memória e esse ideal de alguém que já cá não está numa assombração. Ouve-se também dizer que esta é a história de amor de Heathcliff e Catherine mas também não é isso que o livro conta (como afirma Charlotte no prefácio à segunda edição) - o livro conta-nos como a obsessão de Heathcliff pela Catherine possibilitou que se tornasse numa personalidade com um nível de maldade e acidez próprio de um monstro não humano. Catherine, por sua vez, vive a vida sem ideais de amor, como um vendaval, aproveitando e tirando da vida o que esta lhe vai dando, sem grande plano. É uma história sem heróis numa altura em que a própria literatura era feita de heróis. 
A estrutura narrativa é também muito invulgar, complexa e perfeita. É invulgar alguém escrever um livro destes sem nunca ter escrito nada antes. Claramente, percebemos que toda a vida da Emily tinha sido um intrincado e complexo mundo de imaginação e criação de ficções.
O livro foi um fracasso (e, claramente, só podia ser). O mundo não estava preparardo para a genialidade de Emily. Esta morreu sem ver uma segunda edição e esmagada pelas críticas, até da própria irmã, que achava inconcebível alguém criar um Heathcliff.

Charlotte Brontë
Jane Eyre 
Confesso que, depois de muito pesquisar, parti para este livro com a sensação (justificada) de que a Charlotte era, das três, a mais conservadora e a que fugia mais do risco na criação literária. E este livro acabou, também por isso, por ser surpreendente. A narrativa é até linear, sem distorção, mas mais nada é linear dentro do livro. Jane Eyre, orfã, é criada por uma tia e três primos que não lhe têm qualquer amor. Até aos dez anos, idade em que é internada num colégio de beneficiência, Jane não tem memória de qualquer tipo de afeição. A partir daí percebe que tentar agradar às pessoas não lhe traz frutos e percebe que só há uma forma de nos fazermos amar: através da honestidade. E é nesta honestidade que reside o ponto forte do livro e da Jane. Ela cresce tendo sempre por princípio que será transparente com os que a rodeiam, e com as opções que toma na vida. É um livro sobre a verdade. Jane cresce e vive sempre de acordo com a verdade. Sem ser moralista (ela não vive de acordo com a moral e sim com a verdade), Jane vive sem plano pré-definido. Rejeita a igreja por amar a ideia de Deus, rejeita o amor por não se sentir confortável na posição em que este a coloca. Procura apenas a ideia de família enquanto ligação ao mundo, laço que desde cedo percebeu que tinha de recuperar, nunca o teve por adquirido. É um livro e uma Jane (eles são uma e a mesma coisa) como nunca mais encontraremos na literatura. E uma verdadeira homenagem a esta verdade tão pouco querida aos floreados da literatura europeia daquela época. 


Anne Brontë

Agnes Grey
The Tenant of Wildfell Hall
Agnes Grey é um livro menos intenso que os outros, bastante diferente aliás, e conta a história de uma mulher, Agnes Grey, que resolve sair de casa e ir trabalhar como perceptora, tornando-se independente perante uma família e uma sociedade que tinham outros planos para ela.

Coloco aqui os dois livros de Anne porque o segundo, The Tenant of Wildfell Hall, é muito mais interessante do que o primeiro. A primeira edição do The Tenant of Wildfell Hall esgotou em seis meses tendo sido considerado por muitos um livro ofensivo, exagerado na forma como tratava a personagem masculina, imoral. No prefácio à 2ª edição Anne diz que vai republicar o livro exactamente como o escreveu apesar das duras críticas, porque acredita que a maldade aos olhos dos leitores pode abrir muito mais horizontes do que experienciá-la ao longo da vida. Diz, também, que mostra um homem despótico e violento, e uma mulher que se soube insurgir na defesa dela e do seu filho, tentando influenciar jovens mulheres a não aceitarem este tipo de vida e de tratamento. Diz que se mudar para melhor apenas a vida de uma mulher já terá valido a pena toda a sua vida de escritora. Anne aqui quebrou todas as convenções da sua época, enfrentando espíritos susceptíveis, facilmente impressionáveis, que preferiam que não se fizesse tanto alarido à volta da situação da mulher que, relembro, era, na Inglaterra do séc XIX, propriedade do homem com quem tinha casado. 
Charlotte fala com desagrado deste livro dizendo que Anne teria exagerado na criação desta personagem.  Ela responde que só terá exagerado no dia em que um leitor se sentir aborrecido com os seus livros. Nunca antes. Nunca por fazer com que os leitores vissem o que era a realidade de muitas mulheres do seu tempo. Charlotte poderá ter sido responsável por Anne Brontë não estar, da mesma forma, entre os grandes escritores mundiais, como estão as irmãs, ao repudiar este segundo livro. Anne Brontë foi por muitos considerada a primeira escritora feminista.


terça-feira, 30 de janeiro de 2018

O último livro de Cortázar

Cortázar pode e deve ser lembrado como um escritor que criava as próprias regras da literatura. Não o fazia por qualquer tipo de radicalismo mas porque procurava na vida uma ideia e à volta dela criava um livro que fizesse sentido, que recriasse literariamente essa mesma ideia.

Nos últimos anos da sua vida Córtazar decide viajar durante 33 dias numa auto-estrada, de Paris a Marselha, uma viagem de mais de 700km, numa Volkswagen a que chamava Dragon. A viagem seria levada a cabo com a sua última mulher, Carol Dunlop, em Maio de 1982, após cinco anos de sucessivos adiamentos. Para os dois a auto-estrada era o sítio mais efémero de todos, onde só existiam viajantes e todos de passagem. Eles iam inverter essa lógica escrevendo durante esses 33 dias (duas estações de serviço por dia) um diário de viagem ao estilo dos grandes escritores de viagens mundiais, que Córtazar leu extensiva e intensamente. Iam observar os viajantes, escrever sobre eles, parar em sítios onde todos os outros passam sem olhar.

Foi o último livro de ambos, Carol adoece e morre seis meses depois, Córtazar fica mais dois anos. E como não podia deixar de ser é um livro positivo, de caminho e viagem, cheio de humor e companheirismo. Foi a melhor das despedidas.


 Imagem e ler mais aqui.