Ando há uns tempos a desenvolver um fascínio por alguns escritores que não são escritores de obras primas, mas que usam a palavra para marcar uma posição forte, incontornável e surpreendente. Escritores que falham, que não escrevem sobre o sublime nem de forma sublime, mas escritores que perceberam o poder da palavra depois de impressa.
Um destes escritores é Erskine Caldwell (EUA 1903 - 1987). A última vez que foi publicado em Portugal foi numa (muito feia) edição da Saída de Emergência e antes disso tinham saído umas edições soltas nas duas últimas décadas do século passado. Até aos anos 70 teve atenção das maiores editoras portuguesas. O seu grande livro é a Estrada do Tabaco, transformado em filme por John Ford, um filme que retira do livro alguns dos momentos mais poderosos da narrativa. É considerado um dos grandes escritores americanos que acabou por ser também ele silenciado por uma América que, sendo (tendo sido) a terra da liberdade tem ainda assim alguma dificuldade em lidar com confrontos directos, humanos, como os conflitos que Caldwell soube tão bem escrever.
Caldwell é o escritor da parte mais podre da América. Começa a escrever em 1929, ano do crash da bolsa de NY, acontecimento que lança o país numa miséria profunda. E não estamos aqui a falar de miséria enquanto pobreza inerente às cidades. É mais do que isso. A América foi lançada numa miséria onde os homens e mulheres do interior do país são abandonados à sua sorte. O interior dos Estados Unidos fica sem nada. Não há comida, há muita especulação, há climas pouco propícios às plantações. É esse país que Caldwell procura e descreve. O país que está nos antípodas do Sonho Americano. O país dos vencidos, dos doentes, um país onde a humanidade é posta à prova e onde surgem as figuras mais estranhas e obscuras. Todas as personagens de Caldwell incomodam, causam desconforto, sobretudo numa época de prosperidade como a nossa.
Caldwell escreveu a sua autobiografia em 1951, Call It Experience, e ler este livro mostra-nos de forma mais acutilante as particularidades deste escritor. Muito jovem Caldwell decide ser escritor. De forma racional e com clareza percebe que não é possível ser escritor enquanto experimenta ser outra coisa qualquer. Assim, torna-se escritor e jornalista, achando que ambas as profissões se relacionavam, apesar de muito cedo ter percebido que eram até antagónicas. Durante dez anos passou fome e frio, viveu com muitas dificuldades, enviou centenas de contos para dezenas de revistas. Caldwell criou-se enquanto escritor. Viveu anos com as personagens a crescer na cabeça dele, imaginou-as, conviveu com elas, pensou-as. E depois escreveu o primeiro romance, A Estrada do Tabaco, (de que já falei neste blog), uma obra magistral sobre o fim da humanidade e sobre a desumanidade (ambas muito diferentes). Depois escreve o segundo romance, A Jeira de Deus, um livro perturbador que nos mostra, em apenas duas ou três páginas, das mulheres mais fortes que já vi em toda a literatura, uma mulher que parece ser a grande vítima dos homens e que, rapidamente, se torna na figura mais poderosa do livro, com um discurso brilhante sobre o amor e o erotismo. Caldwell era um reconhecido feminista, as mulheres de Caldwell são independentes, fortes e lutadoras. Mas não são as mulheres convencionais. No seu livro O Dedo de Deus a personagem principal é uma mulher que fornece à vila umas "injecções de vitaminas" que as deixam felizes e com os problemas absolutamente relativizados. É a mulher heroína e ao mesmo tempo a prostituta, divorciada, mãe sozinha. Uma mulher que nunca se deixa cair. Ainda que, como em todos os livros de Caldwell, só no final se revele verdadeiramente.
Mas não se deixem enganar, não há empatia com as personagens de Caldwell. Elas não nos são simpáticas, épicas, grandiosas. Nada em Caldwell o é verdadeiramente. Aqui não há heróis no clássico sentido da palavra. Há sobreviventes com muito poder. Há pessoas sem estereótipo que sobrevivem a uma América racista, exploradora e preconceituosa. Nenhuma personagem é, aparentemente, "the girl next door". E no final todas são. Porque a humanidade não é estereotipada. E o Caldwell viu isso da melhor forma de todas, através da literatura. E mesmo que não tenha escrito absolutas obras de arte, Caldwell escreveu algo muito mais importante que isso, falou de nós, e de tudo aquilo que tememos ao olhar para o lado. Falou do que, na humanidade, nos habituámos a calar.