quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Charlotte Delbo e o Terror

Costumo dizer que dos livros espero a verdade do que lá estiver dito, seja o que for. Os textos fragmentários, descontextualizados do sítio onde estamos a lê-los, pertencem de uma forma mais intuitiva a esse espaço, uma vez que a linearidade não nos pertence em nenhum domínio.

Falo de verdade como quem diz que do ponto de vista do livro o universo criado é um universo que deve ser apreendido como real, não do ponto de vista conceptual e em linha com a nossa realidade mas do ponto de vista interior do próprio livro. Daí que a literatura não deva funcionar de uma forma meramente referencial correndo o risco de nos tornarmos responsáveis pela diluição do livro em nós antes de termos tempo de perceber que história ele nos conta.

Charlotte Delbo foi uma activista da Resistência Francesa. Delbo juntou-se à Resistência mais do que por missão, por empatia com o sofrimento do outro e incapacidade em não agir perante as atrocidades a que França assistia no início dos anos 40 do século passado. Em 1942 foi presa juntamente com o seu marido, George Dudach, assassinado na prisão uns meses depois. Em Janeiro de 1943 Delbo e 229 outras mulheres francesas, presas por actividades ligadas à Resistência, foram levadas para Auschwitz, um campo que raramente recebia não-judeus. Delbo sobreviveu ao campo porque, devido à educação que recebera juntamente com algumas das outras prisioneiras comunistas, foi destacada para algumas funções no campo que apenas algumas pessoas conseguiam executar. Mas muitas outras não tiveram essa sorte e grande parte da obra de Delbo até ao fim da vida passou por perpetuar a sua memória e as suas ideias.

No fim da Guerra e com a sua libertação escreveu a obra Auschwitz e Depois, que inclui três livros, agora publicada na nova editora de João Brito, BCF. Esperou até 1965 para a publicar em França, para perceber como agia o tempo sobre aquelas memórias.

Já muito vimos e ouvimos sobre Auschwitz. O excesso imagético arrisca a nossa indiferença perante o terror. Aliás, muitas vezes damos por nós a perceber fragmentariamente o que se passou e a ter dificuldade em ver o todo. Aqui neste livro Delbo descreve Auschwitz de uma forma que mistura a profunda empatia que ela sente ao ver o sofrimento do outro, amor mesmo, e uma dureza de estilo e de tom que denotam, talvez, algum medo de ver a história e os acontecimentos a que assistiu subvalorizados. Aqui Delbo não mostra ter qualquer cuidado com o leitor. Como se tivesse dedicado todo o cuidado aos seus companheiros de campo. É que nós não precisamos desse cuidado. Porque quando se demonstra este terror tudo o que havia para cuidar ficou para trás.

Ainda não terminei o livro, falo da visão de quem ainda está a ler. Porque para ler a Delbo precisamos de ir tendo a estrutura necessária para a deixar falar. Para não sentirmos no espaço de leitor que aquilo nos é insuportável. É uma leitura lenta, com múltiplas variações (neste livro não há só três livros, há muitos livros dentro de cada um), onde nunca deixamos de investir enquanto leitores. É-nos absolutamente vedada a passividade.

Se vamos falar de verdade a Delbo usou a verdade de milhares de pessoas com quem se cruzou em Auschwitz. E dentro daquilo que Delbo acreditou que seria a sua missão não usou a verdade parcialmente. Por isso saibam que quando pegarem neste livro nunca mais nada será igual na vossa visão do terror. Mas que estarão, de facto, sem medos, diante da mais verdadeira visão do terror.



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