procuramos nos livros sempre algo extraordinário. conforme vamos encontrando, mais vamos procurando. se conseguirmos absorver o que nos é dado a ler e o que o extraordinário transmite então aí corremos o risco de nos tornarmos mais exigentes. conseguimos dizer que um livro é bom, mas a nossa fasquia sobe até sítios difíceis de alcançar.
neste livro de meckert vou saltar directamente para o último conto do livro, o Abismo. os outros são bons contos, mas, lá está, lêem-se com relativa tranquilidade. este, pelo contrário, leva-nos a abismos perigosos. com alguma investigação podemos ficar a saber que pelo menos o contexto em que se passa a história é real, mas ainda assim muda pouco no tipo de abismo em que entramos (já não digo caímos por ser de uma absoluta redundância, por todas as razões, não apenas as gramaticais). o sítio que meckert encontra é um sítio nosso, comum, que nos pode ou não ter sido desvendado. o temor que se abre como portas metálicas é um temor comum à humanidade, ao conjunto, ao limite desta nossa condição que se mantém tão desconhecida. uma procura intensa de uma visibilidade que só a nossa possibilidade de morte torna possível, por mais irónico que isso seja. é tão humano querermos ser vistos como tornar os outros invisíveis. só vemos o que é extraordinário, que rompe barreiras e convenções, mas dificilmente nos fascinamos com o comum. na própria literatura é raro quem consegue de forma eficaz retratar o normal. quem o faz é só por esse feito um escritor fantástico. jean meckert era um escritor extraordinário que soube elevar a sua absoluta normalidade e invisibilidade a um medo de todos nós, humano e orgânico, um medo que toca por um lado a solidão, pelo outro a certeza da nossa finitude.
A vida de Jean Meckert esteve longe de ser fácil. Figura rebelde das letras francesas, Meckert nasceu em Paris a 24 de Novembro de 1910, tendo sido separado da família em 1920 e enviado para o asilo Lambrechts, uma instituição protestante situada em Courbevoie. Desses quatro anos de orfanato ganhou uma repulsa pelo ensino religioso, guardando para sempre os sentimentos de abandono e humilhação. Na escola revelou-se um bom aluno, obtendo o diploma do ensino primário e trabalhando como aprendiz numa empresa de construção de motores eléctricos. Em 1927, já como empregado de escritório, ingressa no Crédit Lyonnais, lugar onde a sua mãe trabalhava como empregada de limpeza. Apanhado pela crise em 1929, Meckert perde o emprego e vai subsistindo através de pequenos trabalhos. Para escapar a esta vida miserável alista-se no exército em 1930, por um período de dezoito meses, sendo punido com várias penas de prisão por ausências injustificadas, conseguindo ainda assim ser promovido ao posto de cabo pelo comandante da 5ª Companhia de Engenharia. Ao regressar à vida civil em 1932, vê-se novamente mergulhado na pobreza. Estávamos na grande época do desemprego, onde era necessário fazer de tudo para sobreviver, e Meckert deitou a mão a tudo o que conseguiu, como o trabalho de vendedor ambulante ao portão da fábrica da Renault. O seu quarto de hotel, em Belleville, torna-se a sua «última trincheira», o refúgio onde escreverá narrativas inspiradas na sua própria existência, designadamente os três contos publicados em “Abismo e outros Contos” (Antígona, 2013): “Um Crime”, “O Bom Samaritano” e “Abismo”.