A minha avó sempre gostou de ler, já aqui falei dela. Mostrou-me livros, ofereceu-me alguns. Mas desde que me lembro dela, desde que nasci, que já não lia muito. Era o meu avô que lia mais. Mas foi ela quem manteve uma estante na sala onde eu e o meu irmão crescemos, onde passávamos as tardes todas, onde fomos voltando ao crescer, ao lado do sofá onde eu me sentava a conversar com ela das últimas vezes que a fui ver. Há pouco tempo a minha avó foi para um lar. A memória foi-se deteriorando nos últimos anos, os livros já tinha largado há muito, depois largou as revistas, depois a televisão. A memória foi-se torcendo, misturando, falamos com ela sem saber com que avó estamos a falar. E no outro dia disse-me que um dos piores aspectos do sítio onde estava era não ter tranquilidade para ler os livros dela. Livros que há muito tempo não lê mas tempo que para ela não tem a mesma dimensão que para nós.
No outro dia, com umas mudanças que fizemos em casa dela, fiz o exercício de olhar para as estantes da sala. Reconhecia todas as cores, as formas, até as texturas. Mas não os títulos. E eu que tinha construído a minha vida à volta dos livros percebi que aquelas lombadas não eram para mim livros como estes que falo. Eram a estante da minha avó, a sala da minha avó, a casa da minha avó, a rua dela.
Ao passar os olhos reparei em vários livros do Erskine Caldwell. Não estranhei o nome, mas não o reconheci. Pesquisei um bocado e percebi que estava na linha dos meus mais queridos autores, os mesmos de quem a minha avó me tinha falado tanto em pequena. Trouxe este pequeno livro para casa, andei com ele uns dias na mala e no outro dia abri-o. Isto porque de repente (o mundo às vezes tem destas coisas) várias pessoas me falavam do Caldwell, e da forma como ele era imprescindível. O livro já não era só o livro da minha avó era o livro dos meus amigos, dos leitores que tanto gostavam do livro.
Vi que tinha tradução e prefácio de Jorge de Sena e o prefácio acabava assim:
"O apelo neste caso toma a forma de uma voz de criança perdida na noite e implorando a toda a humanidade (de que o leitor, rindo-se dele, da família dele e dos que o rodeiam, faz parte integrante) que o deixe ser livre e conscientemente um homem. Ainda quando não concordamos com a afinação da voz, ou ela nos não pareça portentosa, é uma voz humanizada.
E se não é para assim nos ouvirmos uns aos outros que por aqui andamos, não se percebe muito bem porque seremos tantos e teremos voz".
E se calhar o livro nem era da minha avó, era do meu avô, ou do meu tio, ou do meu pai. Mas essa não é a história que eu conto deste livro. É a minha memória da avó humanizada. E agora este é o meu Caldwell, porque se calhar a minha avó já nem se lembra do Caldwell e eu farei por me lembrar por ela.
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