sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Os incêndios são a metáfora do mundo

(prefácio de O Dia do Gafanhoto, de Nathanael West, tradução de Manuel João Neto, editado pela Snob, em pré-venda até dia 16 de Setembro)


Capa de Pedro Simões com pintura de João Alves

Uma das facetas simultaneamente mais trágicas e gloriosas do mundo da literatura, ao ponto de recentemente se ter cristalizado sob a forma de teoria literária, diz respeito a uma constelação mitológica formada por um certo género de livros significativamente mais comentados do que propriamente lidos. Obras que viajam em comboios invisíveis e que se inscrevem no imaginário colectivo sem precisarem de leitores, uma vez que agarram as ideias-chave, quer filosóficas quer iconográficas, da cultura vigente. Porém, não menos interessantes, embora por razões diametralmente opostas, são aqueles que são remetidos para a mais silenciosa e exclusiva categoria dos livros mais lidos do que propriamente comentados. Textos que vivem vidas secretas e exiladas, comentadas em murmúrios de perplexidade, e que sobrevivem quase incógnitos ao tempo, transfigurando-se consoante a época em que são lidos. Livros subtilmente premonitórios e, por isso, tangencialmente desfasados da sua época histórica, desfasados, na verdade, de qualquer época histórica em que existam. É precisamente nessa galáxia literária quase privada que a obra de Nathanael West, ele próprio uma difusa personalidade de rasto discreto, e mais concretamente o romance O Dia do Gafanhoto, orbitam.

Descendente de judeus lituanos em fuga dos pogroms da Rússia czarista, West nasceu em Nova Iorque em 1903 e, depois um percurso académico pouco mais do que medíocre durante o qual, tanto quanto nos é possível saber, não se terá interessado por outra coisa senão ler livros, dedicou-se sobretudo à escrita, actividade que desenvolvia em paralelo com empregos menores, tendo vivido também por um breve período de tempo em Paris, fase em que, segundo se diz, terá sido muito próximo de Max Ernst. Apenas a partir do momento em que West é contratado como argumentista de cinema em Hollywood, território geográfico e simbólico nuclear no universo mitológico deste autor, se começa a desenhar na sua vida a perspectiva de uma espécie de carreira. Tinha alguns amigos no meio literário, entre eles William Carlos Williams e F. Scott Fitzgerald, e interessava-se por misticismo e pela história das religiões. Morreu com apenas trinta e sete anos num desastre de aviação, que vitimou também a sua esposa, aproximadamente um ano depois de ter publicado O Dia do Gafanhoto. 

A vida de Nathanael West foi, portanto, tão aparentemente banal e secreta como a sua obra. Não seria correcto, no entanto, confundir essa clandestinidade com ausência de reconhecimento crítico, uma vez que ele é actualmente considerado um dos autores canónicos da literatura norte-americana do século XX, graças sobretudo a “Miss Lonelyhearts”, o seu mais célebre romance. Além do mais, a sua influência é detectátvel em autores do pós-modernismo norte-americano e, não por acaso, no universo cinematográfico: “O Dia do Gafanhoto” foi adaptado para cinema sensivelmente trinta anos depois da sua publicação e é difícil, hoje, não reconhecer nos filmes de David Lynch reminiscências dos ambientes insólitos e das personagens bizarras que habitam as narrativas de Nathanael West.

         West é muitas vezes caracterizado como “o mais impessoal dos escritores americanos”, uma característica objectiva que dificulta a classificação da sua obra. No caso de O Dia do Gafanhoto, a força da escrita não reside, efectivamente, nem nas personagens, nem nas suas emoções, nem sequer na dramatização de dilemas existenciais ou problemáticas político-filosóficas. Baseado em recursos simples e numa engrenagem narrativa quase mecânica, este romance corresponde a uma literatura que não pertence nem aos espaços íntimos nem se projecta em visões sociais panorâmicas, antes propondo-se ser uma pura literatura de imagens (ou de visões) — não surpreende, portanto, que nele se coloque tão explicitamente em comparação as imagéticas próprias do cinema e da pintura. Porém, e apesar do tom distanciado e contido e da artificialidade aparente das personagens e dos eventos narrativos que compõe o enredo de O Dia do Gafanhoto, não é verdadeiramente uma impessoalidade literal que transparece do texto, mas a simulação de uma impessoalidade por meio de um jogo de sombras. Na verdade, a personificação é um vício das próprias personagens do livro, e nos cenários por onde elas circulam todos os elementos parecem encenar-se permanentemente a si mesmos. Por todo o lado se vêm máscaras, disfarces e falsificações, e nunca sabemos exactamente quem é a voz por detrás das palavras, uma vez que o prisma narrativo está constantemente a mudar, como se o autor nunca estivesse realmente dentro da sua história mas antes a tropeçar para fora do livro, ou para fora da realidade.

O enredo de O Dia do Gafanhoto é de uma simplicidade desconcertante: a narração num tom quase neutro de uma série vagamente desconexa de acontecimentos protagonizados por um grupo de personagens aleatórios sem, aparentemente, qualquer elo em comum entre si a não ser o de habitarem o mesmo perverso território de uma Los Angeles dominada pela indústria cinematográfica. Este grupo de personagens inclui um desenhador de cenários, um actor de vaudeville, uma aspirante a actriz, um contabilista, dois cowboys que trabalham em rodeos e como figurantes em filmes, um empresário-anão, entre outros. No entanto, tão importante como eles é a multidão em fuga que corre, histérica e selvagem, pelas avenidas da cidade, hipnotizada pelo sonho babilónico do cinema. 
 
Tod Hackett, o desenhador de cenários que é o protagonista do romance, deambula pelos cenários artificiais de Hollywood, à procura de inspiração para a pintura O Incêndio de Los Angeles. Este quadro é a sua grande obsessão artística, que ele pretende ver consagrada no futuro como a reencarnação moderna das paisagens desoladoras de pintores obscuros do século XVII, como Salvator Rosa, Francesco Guardi e Monsu Desiderio – os grandes artistas “da Decadência e do Mistério”, segundo West. Na pintura estão representados os incendiários, aqueles que vão para a Califórnia para morrer, enfeitiçados pelas visões quase místicas da abundância e da ficção no deserto mitológico por excelência da cultura moderna de massas, onde, como seria previsível, nada acontece, nada, pelo menos, capaz de aliviar o desejo irreprimível e latente de violência da multidão. Pelos interstícios da turba, num estado mental entre o sonho e o sono da realidade, vagueiam os inadaptados, aqueles que são incapazes ou que se recusam a deixar ser capturados pela magia satânica dos tempos, em fuga desesperada do tumulto apocalíptico. O quadro O Incêndio de Los Angeles, à semelhança do próprio livro, sugere a representação do colapso civilizacional de que a multidão é a mensageira e os marginais os desertores, um mundo artificial de miragens e fantasmagorias cinemáticas onde predomina a frustração e o tédio.

         De superfície aparentemente inócua e impessoal, porque sufocada pelas suas próprias máscaras, esta obra de ficção descreve uma premonição da catástrofe, cujos sinais se encontram disseminados por todo o texto, desde as macabras lutas de galos até aos colossais montes de lixo acumulados nos estúdios de cinema, passando pela alusão à praga bíblica do título do livro e pelo uivo da sirene da ambulância da cena final do livro. Com a distância do tempo, é-nos legítimo interpretar “O Dia do Gafanhoto” como uma parábola da atmosfera de tensão e mal-estar que precedeu a Segunda Guerra Mundial, uma vez que nele ecoa o rumor silencioso dos sobressaltos de massas de que o nazismo era, na época, a manifestação mais poderosa. Podemos também reconhecer na obra uma evocação da célebre Dust Bowl, as tempestades de areia negra que se seguiram à seca que atingiu as Grandes Planícies dos Estados Unidos da América logo após à Grande Depressão, causando um desastre ambiental, agrícola e social de grande escala que motivou uma onda deslocações migratórias em massa, sobretudo em diáspora rumo à Califórnia. É inegável que por entre atmosfera vagamente surrealista do enredo, reminiscente do surrealismo simultaneamente onírico e inquietante de Max Ernst, se pressente uma frequência de onda sinistra e ressonante desse rumor críptico do tempo. Porém, perante uma obra de ficção tão elíptica e alusiva como esta, qualquer interpretação não pode senão ser assumida como circunstancial e balizada pelo seu tempo.

Analisado em perspectiva, este livro parece ecoar ele próprio no presente, sendo essa precisamente a grande linha de força das visões tumultuosas e grotescas que nele se projectam e que o poeta W. H. Auden, grande admirador de West, considera serem as parábolas de um “Reino do Inferno”. As actuais circunstâncias políticas e sociais parecem estranhamente similares às da época em que O Dia do Gafanhoto foi escrito: a crise financeira de 2008, cujos efeitos sísmicos ainda hoje se fazem sentir, a atmosfera de alarme perante alterações climáticas e a convulsiva e potencialmente apocalíptica situação geopolítica num período histórico de aparente transição de poder. Em 2018, tal como em 1939, ouvem-se os tambores ocultos da civilização e sopram ventos que pressagiam tempestades, e no terceiro milénio, tal como na primeira metade do século XX, confrontamo-nos com alterações tecnológicas que estão a provocar a emergência de uma nova era cibernética baseada em simulações virtuais da realidade. Se em tempos imemoriais as ambições do homem se afundavam tragicamente nos oceanos, transformando-se então no sublime “sargaço da imaginação”, em Hollywood, por seu turno, os sonhos que nos assombram morrem nas lixeiras dos estúdios. No terceiro milénio, os sonhos também nascem e morrem num ecrã, mas agora num ecrã tridimensional e imersivo que, no entanto, nunca cumpre a sua profecia de imortalidade. No presente, assim como num período histórico do século passado não tão distante como hoje nos parecerá, as imagens que nos chegam do mundo compõem um quadro mental de uma civilização pré-caótica na iminência de um desastre que, porém, como em Blanchot, não chega nunca a ocorrer realmente, excepto na sua dimensão alegórica e burlesca.

West parece querer anunciar-nos que a catástrofe do futuro (o incêndio terminal, o grande “holocausto de chamas”) será total ou não será mais do que o espectro da catástrofe por vir do último homem da história, ficcionando-se a si mesmo no infinito arquivo morto de reproduções e personificações de uma realidade já anacrónica, ultrapassada pelos duplos de si própria. A vertigem contemporânea, à semelhança da vertigem da representação (ou, mais precisamente, da ficção) em que se lançam as personagens deste livro, parece capturar-nos num sono do qual, tal como Homer Simpson, a personagem mais icónica de O Dia do Gafanhoto, receamos não conseguir acordar, isto é, um sono que pode potencialmente transformar-se em morte sem que disso nos apercebamos. Na era da ficção absoluta, esta nova forma de morte corresponde a um puro estado de transição, suave e indolor, para uma realidade expandida em que, aparentemente, a única linha de fuga que entrevemos no horizonte é a do “voo uterino” da letargia e da auto-absorção do humano no sonho de si mesmo. No vasto “lá fora”, porém, a atmosfera prá-apocalíptica é a emanação visível do pânico da humanidade perante a eventualidade de ser forçada a reabitar a sua própria vida, descobrindo nela o vazio que a paralisa e a faz naufragar num mundo de miragens insubstanciais que são o combustível do incêndio da catarse e da regeneração do homem pela violência.

O Dia do Gafanhoto exorta-nos a observar a paisagem e a decifrar os sinais. Prepare-se, leitor: neste livro não se passa nada.


Manuel João Neto


Sem comentários: