quinta-feira, 27 de junho de 2013

acabei de me lembrar

que adoro o Manuel de Lima.

vamos ser surrealistas em setúbal?

ontem ligou-me a fátima, a minha querida livreira e amiga da culsete. apanhou-me num momento confuso no trabalho para me fazer uma proposta. tenho a sensação clara que lhe disse que sim antes de perceber o que me pedia. para além de ser incapaz de dizer que não aos meus dois livreiros sabia que ia ser um desafio do melhor que há. não vos vou ainda revelar nada, só dizer que uma noite destas estaremos a ser surrealistas em setúbal. daqui a poucas noites.
por isso hoje estou na baixa luz da minha sala rodeada de livros surrealistas a ler poesia e a magicar ideias. estes são os meus momentos cheios. os surrealistas são do caraças.
e a propósito da greve geral de amanhã deixo-vos um poema do Cesariny e um ponto de encontro, às 15h, no rossio. sem medos, para não continuarmos no bolso de ninguém.

Ora deixai-me dizer
que vejo tudo ao contrário
do que era lícito ver

Ontem encontrei um operário
todo de pernas para o ao
no bolso de um usurário

"Que linda vista para o mar!"
dizia - e dizendo isto
tinha uns olhos de chorar
(...)
Cesariny

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Franzen did it again


vou falar do Correcções a começar pelo fim. pelo momento em que o Chip chega a casa a tempo do pequeno-almoço de Natal em família, o último, segundo a mãe Enid. é o momento mais pacífico e idílico de todo o livro. com a mestria de sempre, Franzen dá-nos a volta com a subtileza da escrita e convence-nos, por uma única vez no livro, que aquela família não está absolutamente condenada ao abismo. só aí. ou a partir daí (é uma segunda leitura, discutível). é disso que nos fala o livro. de uma família absolutamente disfuncional com diversos núcleos. Gary e Caroline aparentam ser, no início do livro, o casal mais estável, com três filhos (não será de todo inocente que dois deles se chamem Caleb e Aaron, como no A Leste do Paraíso do Steinbeck, numa referência, aqui explícita, a Abel e Caim). no entanto é dentro da vida deste casal que Franzen se foca mais detalhadamente, com passagens em tempo real de diálogos e referências, mostrando-nos, sem descrever, a dor profunda que se vive dentro do casal e a forma como os miúdos nunca saberão gerir isso. Denise, a irmã mais nova vai sendo apresentada aos poucos, muito lentamente ao longo das mais de 500 páginas. quanto mais Franzen nos revela Denise mais nos apaixonamos por ela. pela forma de estar livre e de ser convicta, pela forma como não questiona a sua bissexualidade revelada apenas na sua forma de amar e não de viver a própria sexualidade. Chip é o mais disparatado e perdido, por quem o pai, Alfred, chama sempre, mesmo não estando ele em casa. Chip é o que mais surpreende no final, por ser quem realmente fica. fez-me lembrar o meu irmão. Alfred e Enid são os pais, representados entre a dureza e a caricatura, numa espiral tanto de tristeza como de esperança.
este é um livro sobre a família. sobre todas as famílias. sobre como as famílias se corrigem indesistivelmente até ao final. do livro e de tudo. como nas famílias as dores se reciclam para serem úteis e renovadoras. este é um grande livro. um livro corajoso para leitores corajosos. Franzen did it again. e não vos falo da correcção final, terão de ler o livro. mas posso dizer desde já que aqui vemos que é a família quem mais nos destrói e ao mesmo tempo a quem recorremos sempre para respirar. para nos corrigirmos. mesmo com o baixo nível de tolerância que todos eles têm uns pelos outros. o amor fraternal de Denise e Chip sempre no limite destrutivo. o amor de Enid ao neto. a vontade de Jonah, o neto, em não trazer tristeza à avó. as conversas de Denise com o pai durante os exercícios. a crueldade de Gary. estamos neste livro no plano mais íntimo desta família. e não são poucas as vezes que nos incomodamos, que nos sentimos a mais, que nos sentimos a invadir o espaço que não nos pertence. e no fim quase nem é difícil largar o livro. porque é no momento que todos eles largam uma amarra qualquer. e aí, sem vos contar o fim vos digo - não é crueldade ou maldade. é aquilo que, na família, nos permite corrigirmo-nos, aprendendo.
   

segunda-feira, 24 de junho de 2013

que tipo de leitor queremos ser?

vou falar hoje de uma conversa muito comum por entre as conversas de cafés sobre livros. aquilo que "tem" de se ler. a pressão aumenta se somos pessoa dos livros. ninguém imagina que não tenhamos lido uma lista infinita de livros e ninguém estará verdadeiramente completo sem ter lido o Ulisses ou o Em Busca do Tempo Perdido. não gosto dessa conversa. e, como imaginam, levo com ela todos os dias.
acho que cada um de nós cria uma biblioteca interior. nessa biblioteca vamos criando os nossos mais que tudo. para isso, e para que a nossa biblioteca não se construa em cima de caos (tão fácil ir por aqui) temos de pensar que tipo de leitor queremos ser (em resposta à C.). temos de saber qual é o nosso caminho nem que a escolha desse caminho seja não termos caminho nenhum. acredito que posso ser ao mesmo tempo leitora de franzen e rui nunes. mas sei que quando leio rui nunes ou lispector ou herberto helder há algo que muda irremediavelmente na minha forma de ler. e que durante um momento é difícil acreditar que posso sair dali. mas saio por escolha, porque me sinto incapaz de ser esse tipo de leitora em exclusivo. tenho um fraquinho poderoso por quem é, mas eu não consigo. preciso de ler outros universos. mas quando penso na leitora que quero ser sei que quero ser uma leitora honesta com o escritor. quero que o diálogo que ele mantém comigo seja de alguma forma transparente. quero perceber que estamos a dialogar um com outro. para isso, e como me ensinou o R. o escritor tem também, assim como eu a ler, de ser honesto a escrever. e essa honestidade não tem de vir dele enquanto pessoa mas enquanto escritor. logo, essa honestidade só se pode entender na leitura de um texto ou de um livro. é um processo íntimo e privado. assim, nesta minha definição de leitora cabe um mundo de livros. mas não cabem livros maus. não leio para me distrair. leio para me acrescentar. por isso, se o livro é mau e não cumpre estes meus parâmetros, eu não o leio.
na minha biblioteca interior cabem os meus mais que tudo. não são muitos se bem que o meu universo de leitura seja alargado. cabe o Steinbeck (e tenho de me lembrar deste discurso para não dizer que quem não leu o A Leste de Paraíso nem devia falar de literatura), cabe o António Ramos Rosa, a Lispector, o Rui Nunes, o Boris Vian, o Cesariny, o Herberto Helder, a Rosa Alice Branco, a Rosa Montero, o Cortázar, o Borges, o Franzen, o Afonso Cruz, a Ana Teresa Pereira, o Juan Rulfo, o Ernesto Sampaio, o Miguel Torga, o Alberto Manguel, o David Vann, o Vergílio Ferreira, o Fante, o Gonçalo M. Tavares, o Mário Henrique Leiria, o Luiz Pacheco, a Maria Zambrano.
estes foram verdadeiros escultores do que eu hoje penso. poderia dizer que é inadmissível não os terem lido, voltando ao início deste texto. mas não vou dizer, vou só dizer que se não os lerem vão estar a cometer um erro disparatado. é que são bombas em forma de livros. e há poucas coisas melhores do que ter um livro que nos rebenta na cabeça e nas mãos.  

quinta-feira, 13 de junho de 2013

help

estou de volta de férias absolutas e claro que, como tantas outras vezes, preciso de vir aqui pensar um bocado o trabalho. não vou voltar a entrar nas antigas ansiedades por isso vou espalhar tudo aqui e esperar as vossas reacções e comentários. fico-vos mui agradecida, já sabem que "finjo" gostar de trabalhar sozinha mas é uma grande treta.

- o boris vian está parado não por falta de vontade mas por medo. medo é a palavra certa. não sei por onde atacar nem o que fazer. sei que vou fazer mas não consigo avançar. estou paralisada. preciso começar a montar o espectáculo e nem sei por onde começar.

- ando a criar o curso surrealista. é o que está a andar mais depressa, mas continuo a aceitar todas as ajudas - inputs, autores, poemas, influências, autores paralelos. está a ficar giro, giro!

- estou a planear uma cena-super-secreta da qual saberão mais tarde do que se trata - preciso para já que me falem de documentários sobre escritores. assim, só. vago, vago.

- o LEVA continua à espera de encomendas mas está já à espera das primeiras reuniões. decidi conhecer pessoalmente algumas instituições e descobrir lá, com as pessoas, que livros poderiam ter interesse - isto não muda o propósito inicial, claro, mas aumenta a área de ataque. estou muito feliz por ter a possibilidade de conhecer de perto pessoas que por várias razões (e as razões são mais do que eu própria imaginei) não podem ler e poder com elas e com as pessoas que as acompanham descobrir a melhor forma de introduzir o LEVA nas vidas e quotidianos de todos eles. ando a preparar as apresentações e a marcar reuniões. vou brevemente precisar de voluntários para gravar, se bem que recebo sempre voluntários para ler. as gravações que aí vêm serão curtas por isso os voluntários podem gravar mesmo que com pouco material ou experiência. continua a achar importante (por questões práticas) que os técnicos se juntem com leitores amigos,  para agilizar a gravação dos pequenos textos.

sou uma menina eu sei mas ando sempre à procura de ajuda. amo cada um destes projectos e prometo que os levo avante para não pensarem que sou uma dilentante!
isto divide-se em mil listas já todas escritas. agora é atacar isto à séria. começo sábado. amanhã não dá que vou comer caracóis e gravar livrinhos. e hoje tenho de estender roupa e lavar a loiça. é verdade. mas de sábado não passa. até têm tempo de dar sugestões, vejam lá, só vantagens!

quarta-feira, 12 de junho de 2013

A Purga

Há livros que de alguma forma são lidos como monumentos. Já o disse muitas vezes, tenho um fraquinho por livros em que a violência vem de dentro para fora. E livros em que a história vem das personagens e menos do enredo. A Purga tem isto tudo. Escrito na Finlândia por Sofi Oksanen conta uma parte importante da história da Estónia através da história de duas mulheres de duas gerações diferentes. Um enredo repleto de segredos e que pisa durante todo o livro o gelo fino das relações familiares e do amor à família que pode ou não ser mais forte que o instinto de sobrevivência. Mas não pensem que aqui entramos em clichés. Não há clichés nem lugares comuns neste livro. Há retalhos de uma história que é contada ao mesmo tempo que é montada dentro da nossa imaginação. O livro leva-nos num labirinto onde não nos perdemos ainda que saibamos que estamos dentro de um caminho tortuoso. Com descrições inacreditáveis, com destaque para a cena inicial em que Aliide encontra Zara caída no quintal e para a cena em que Aliide descobre a verdade sobre Zara e esta está fechada no compartimento às escuras esmagada pela vergonha e medo, o livro transporta-nos numa leitura que é ao mesmo tempo caótica e pacífica, uma mistura difícil de conseguir e que aqui é conseguida com uma mestria única. Com duas personagens que significam ao mesmo tempo a esfera privada e pública da história da Estónia este livro torna-se absorvente e inesquecível. Um livro a sério. Um livro a sério, sim. Que nos enche as medidas na história, na estória, nas personagens, na escrita simples, clara e crua de Sofi Oksanen. Precisamos de mais Sofi Oksanen. Com mais este livro a Alfaguara caminha para aquele sítio místico onde coloco duas ou três editoras portugueses – se eles publicam é bom. As provas que nos têm dado são essas. E A Purga é uma bomba no nosso panorama editorial. Um livro com todas as letras maiúsculas.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

quando este herberto helder me andava a deixar ligeiramente ansiosa pela falta de bombas eis que esta rebenta no meu colo


nunca mais quero escrever numa língua voraz,
porque já sei que não há entendimento,
quero encontrar uma voz paupérrima,
para nada atmosférico de mim mesmo: um aceno de mão rasa
abaixo do motor da cabeça, 
tanto a noite caminhando quanto a manhã que irrompe,
uma e outra só acham
a poeira do mundo:
antes fosse a montanha ou o abismo -
estou farto de tanto vazio à volta de nada,
porque não é língua onde se morra,
esta cabeça não é minha, dizia o amigo do amigo, que me disse,
esta morte não me pertence, 
este mundo não é o outro mundo que a outra cabeça urdia
como se urdem os subúrbios do inferno
num poema rápido tão rápido que não doa
e passa-se numa sala com livros, flores e tudo,
e não é justo, merda!
quero criar uma língua tão restrita que só eu saiba,
e falar nela de tudo o que não faz sentido
nem se pode traduzir no pânico de outras línguas,
e estes livros, estas flores, quem me dera tocá-los numa vertigem
como quem fabrica uma festa, um teorema, um absurdo,
ah! um poema feito sobretudo de fogo forte e silêncio

Herberto Helder 
Servidões
2013

segunda-feira, 3 de junho de 2013

carreirismo(s)

há muitas formas de ver o trabalho. a forma como vivi estes últimos dez anos foi exactamente a tentar perceber de que forma eu queria viver o meu trabalho. e ultimamente têm acontecido muitas coisas que me têm feito pensar muito nisto. estar num trabalho do qual não consigo sair por ter boas "condições". o falar hoje de utopia e do que seria uma sociedade utópica para nós. a falta de dinheiro ao fim do mês. o ter amigos que arriscam muito mais do que eu conseguirei alguma vez arriscar. o terem-nos perguntado hoje que legado queremos deixar depois de morrer - pelo que queremos ser lembrados.
eu gosto de trabalhar. gosto da ideia de criar, construir um produto. mas gosto da ideia de o passar aos outros depois. de haver algo de comunitário no que estou a fazer. na construção de um produto útil que acrescente algo importante a quem o recebe. para além do meu emprego todo o trabalho que eu faço é criado por mim, não é encomendado ou pedido externamente. isto tem dois lados muito importantes que não podem ser esquecidos: por um lado é uma liberdade imensa porque depende só de mim (e eu não preciso de "obrigações" ou "prazos" para me meter na arena); por outro lado o meu trabalho não é procurado por ninguém (pelo menos não na larga maioria das vezes) - é procurado depois do produto terminado mas ninguém me procura para que crie esse produto. são dois lados que se equilibram e o resultado final do que tenho feito supera em absoluto qualquer expectativa ou hesitação. ver que nos cursos vão pessoas de outros cursos que compraram os livros de que lhes falei, vê-los a tratar os meus autores por tu. ver que de uma semana para a outra leram livros de que falei para ainda poderem falar deles em aula. ver os eventos cheios de gente que quer que existam mais. ver as perguntas que suscitam, os e-mails, o reconhecimento através da leitura.
hoje pensei muito nisto - muitos acreditam que a carreira é o oposto da vida pessoal. eu não criei uma crença do contrário, criei uma vivência do oposto. eu sou os meus livros, as minhas pessoas e os meus eventos. o meu boris vian e o meu cesariny. e sou a minha família, os meus amigos e os meus filmes. e as minhas viagens. mas neste sítio onde estou agora poucas coisas me agradam mais do que estar aqui uma noite em silêncio de volta dos meus surrealistas a ter, numa noite, um curso inteiro desenhado. há tempo para tudo nos meus dias mas estes são os dias mais meus.
se a minha carreira for ler e pôr pessoas a ler então não é em nada um oposto da minha vida pessoal e emocional. mesmo que não venha daí o dinheiro das contas. e o único legado que pretendo deixar é ter posto pessoas a ler, em bom. e isso é do caraças.

nem há outra maneira

on surrealismo

e é preciso correr é preciso ligar é preciso sorrir
      é preciso suor
é preciso ser livre é preciso ser fácil é preciso a roda
      o fogo de artifício
é preciso o demónio ainda corpulento
é preciso a rosa sob o cavalinho
é preciso o revólver de um só tiro na boca
é preciso o amor de repente de graça
é preciso a relva de bichos ignotos
e o lago é preciso digam que é preciso
é preciso comprar movimentar comércio
é preciso ter feira nas vértebras todas
é preciso o fato é preciso a vida
da mulher cadáver até de manhã
é preciso um risco na boca do pobre
para averiguar de como é que eles entram
é preciso a máquina a quatro mil vóltios
é preciso a ponte rolante no espaço
é preciso o porco é preciso a valsa
o estrídulo o roxo o palavrão de costas
é preciso uma vista para ver sem perfume
e outra menos vista para olhar em silêncio
é preciso o logro a infância depressa
o peso de um homem é demais aqui
é preciso a faca é preciso o touro
é preciso o miúdo despenhado no túnel
é preciso forças para a hemoptise
é preciso a mosca um por cento doméstica
é preciso o braço coberto de espuma
a luz o grito o grande olho gelado

E é preciso gente para a debandada
é preciso o raio a cabeça o trovão
a rua a memória a panóplia das árvores
é preciso a chuva para correres ainda
é preciso ainda que caias de borco
na cama no choro no rogo na treva
é precisa a treva para ficar um verme
roendo cidades de trapo sem pernas



  
mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim
1981