nos últimos vinte anos assistimos a uma profunda e marcante alteração do panorama editorial português. não só no meio editorial em si mas na nossa forma de nos posicionarmos perante a edição de um livro. há vinte anos atrás publicar era considerado um passo fundamental no caminho da escrita mas a escrita antecedia a publicação muitas vezes (arrisco mesmo a afirmar que na maioria) durante largos anos. o escritor amadurecia, aprendia, lia e escrevia muito antes de poder publicar.
com a difusão da Internet, no final do século passado, democratizou-se a escrita passando a ser possível dar a ler. esta facilidade com que se dava a ler não só a nossa obra como aquilo que pensávamos e queríamos que fosse ouvido transformou-nos em leitores mais ricos e com mais incentivos literários de sítios nem sempre prováveis. com as redes sociais nomeadamente com o facebook essa democratização expandiu-se.
a esta expansão democrática da escrita podemos associar uma guetização da publicação, da edição de livros. pondo de lado um mundo paralelo e apenas comercial, de que me vou escusar a falar por agora, vou centrar-me nas edições de autores reais, aqueles que não escrevem fora do intuito da própria escrita. esta democratização da escrita acabou por tornar o livro um objecto mais raro, uma vez que não era necessário para que a obra fosse lida, ainda que este fenómeno não fosse óbvio. podíamos aliás pensar que se passaria algo oposto, como um crescente desinteresse pelo livro impresso. no entanto o livro sacralizou-se, tornou-se uma assinatura do autor por fora e a cima de todas as outras publicações em rede.
a falta de poder de compra trazida pela crise poderia ser também vista como um entrave a esse crescimento do livro impresso, mas é aqui que, a meu ver, se opera o mais incrível movimento literário associado ao mundo editorial destes nossos últimos vinte anos. começaram a surgir editoras pequenas, sem fins lucrativos, que têm no seu centro apenas a publicação do autor enquanto autor e do seu texto enquanto texto. acompanhando esta mesma sacralização as editoras formaram-se sabendo que estavam a acompanhar uma vontade de publicação para além de outro interesse que não fosse o assinar por fora e acima das publicações em rede de um autor. a publicação tornou-se um ritual de vida literária e as editoras a sua ponte. um ritual acarinhado e fundamental, mas ao contrário do que se passava antes, já não necessário à vida pública de um texto.
falo-vos deste fenómeno porque acho este movimento um grande salto da nossa forma de viver a literatura e que me parece que, aparentemente, ainda não é reconhecida por muitos leitores. é um fenómeno, infelizmente, mais ligado à poesia. digo infelizmente não por desprimor à poesia, claro, mas porque creio que seria interessante ver o mesmo acontecer com a prosa, a filosofia e outras áreas literárias ou científicas. mas termos isto a acontecer na poesia é uma forma de termos maior e mais bela poesia. porque é uma poesia que tem vontade de ser lida e de existir dentro do livro impresso como uma marca de eternização. e são editores que percebem que o que recebem de volta dessa mesma leitura da poesia que dão a ler valoriza, justifica e credibiliza todo o trabalho editorial que sobrevive longe de uma lógica de lucro.
foram vinte anos de grandes mudanças no panorama editorial. muito continua igual, claro, a leitura também se democratizou, muita gente bastante improvável passou a publicar, multiplicaram-se as razões para se publicar um livro. mas num mercado pequeno, paralelo e alternativo, há editoras sem distribuição, dinheiro para promoção e com pouca tiragem que fazem pela poesia neste pequeno país muito mais do que tantas outras editoras com tantos outros recursos conseguiram fazer.
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